1. Robert Reid Kalley - O Apóstolo da Madeira
de Michael P. Testa
ed. Igreja Evangélica Presbiteriana, 1963 e (2ª Edição), 2005.
Durante muitos anos, só conhecíamos esta biografia do grande missionário escocês, Robert Reid Kalley. Embora fosse durante 15 anos missionário em Portugal – de denominação presbiteriana – Michael Testa escreveu a sua obra em inglês, sendo ela traduzida para português pelo Pastor Manuel de Sousa Campos. O autor veio a falecer em 1981. O texto da versão de 2005 foi revisto depois, por vários colegas da denominação presbiteriana, sendo publicado num formato atrativo num opúsculo de 87 páginas.
A humildade do seu autor é notável - diz na sua introdução: A narrativa da vida e obra do Reverendo Dr. Robert Reid Kalley devia ser empreendida por um hábil biógrafo! A minha reação aqui creio ser natural: considero que a narrativa dessa vida e obra foi de facto empreendida por um hábil biógrafo – o próprio Testa! Escreve de uma forma objetiva, cingindo-se aos factos históricos baseados nos diversos documentos históricos que tem à disposição. O livro contém poucas descrições de costumes ou de lugares, mas cita amplamente do diário de Kalley e de documentos contemporâneos que são pertinentes. Sentimos o entusiasmo contagiante do missionário através de citações que Testa faz, com poucos comentários, e é desta forma que vemos que o missionário e o biógrafo vibram com o mesmo entusiasmo por Cristo e a Sua chamada aos seus servos. Vejamos, por exemplo, as seguintes palavras que Testa cita da Acta da Assembleia Geral da Igreja da Escócia, a 21 de Agosto de 1845:
Eu fui um infiel, acostumado a desprezar toda a religião, sentindo grande gozo na frieza, nas trevas e na exibição da infidelidade… Quando senti, satisfeito, que há um Deus, que este livro (apontando a Bíblia) é de Deus, então eu senti que cada cristão é chamado a entrar naquele campo de atividade em que melhor possa usar para Deus, todos os talentos que Deus lhe deu. E quanto a mim, tenho pensado seriamente de que maneira, como médico cristã, posso melhor servir o Filho de Deus (op. cit. p. 15).
Ao longo de 32 páginas Testa conta a chamada de Kalley para o «apostolado» na Ilha da Madeira (no sentido de quem é enviado pelo Mestre – não, obviamente, no sentido de «autoridade eclesiástica máxima» que a tradição veio a conferir a essa palavra). Conta com dados objetivos o alcance do ministério do missionário de serviço médio e de proclamação direta do Evangelho, sem em nenhum momento sugerir que exista algum conflito entre essas duas formas de ministério cristão. Conta a maneira como surgiram ondas de oposição, mostrando o estranho paradoxo de um povo que reconhece um missionário como um grande benfeitor vir, tão pouco tempo depois, a ser movido para o perseguir:
O mesmo município que em 1841 tinha agradecido publicamente ao Dr. Kalley como benfeitor, por ele ter estabelecido uma cadeia de escolas na ilha, agora, dois anos volvidos, impõe o encerramento das escolas (op. cit., p. 26).
O autor, como Kalley, foge a qualquer tipo de polémica desnecessária, mostrando a importância de contactos amigos com o clero romano, que cultivou quando possível tanto na Madeira como posteriormente no Brasil:
Um caso desta natureza é a sua amizade com o erudito Padre Moniz, no Rio de Janeiro. Trocavam visitas frequentemente e discutiam livremente em toda a extensão temas como “a luz interior da experiência religiosa” (op. cit., p. 73).
O estilo sóbrio e factual do autor revela-se mesmo nos momentos mais dramáticos da sua história:
Disfarçou-se de mulher doente e foi transportado numa rede, que era a maneira habitual de então transportar os inválidos, para a quinta dos Pinheiros e, ali, antes que nascesse o Sol, no dia 9 de agosto, foi posto a bordo do navio britânico “Forth”, o qual, providencialmente, tinha aportado na baia do Funchal (op. cit. p. 42).
Testa dedica um segundo capítulo à migração dos madeirenses para as Antilhas e, depois, Illinois. O seu terceiro capítulo descreve o apostolado posterior de Kalley no Brasil e, depois, os últimos tempos da sua vida, já aposentado na Escócia, e a sua morte. Nos apêndices, Testa junta textos significativos e, nomeadamente, o texto de excomunhão de dois dos fiéis madeirenses, convertidos sob o ministério de Kalley (op. cit., p. 76).
Cheguei ao fim da leitura desta obra com a sensação de que tinha captado bem a essência da história do ministério de Kalley. O autor de certa forma «esconde-se» à sombra da figura que descreve e da história que relata e, ao fazê-lo, cumpre o seu objectivo com excelência. Mais do que exaltar a figura do «apóstolo» Kalley, Michael Testa leva-nos a glorificar o Senhor Jesus Cristo, a cujas ordens sempre esteve este invulgar servo.
2. Jornada no Império – Vida e Obra do Dr. Kalley no Brasil
de William B. Forsyth
ed. Fiel, São Paulo, 2006.
Depois de ler a obra de Testa, foi uma surpresa grande passar à leitura de Jornada no Império, de William B. Forsyth. Missionário inglês, com uma missão no Brasil que hoje se chama «Latin Link», William “Ban” Forsyth, da Igreja Congregacional, faleceu em 2008, com 101 anos, tendo realizado, como Testa, uma obra missionária muito significativa.
Uma parte da minha surpresa veio do facto de saber que esta obra, publicada em 2006 pela Editora Fiel, é uma tradução de um livro em inglês, de que tinha ouvido falar, mas que nunca lera, The Wolf from Scotland – The Story of Robert Reid Kalley - Pioneer Missionary, publicado em 1988. Que o clero católico na Madeira, e depois no Brasil, tenha tratado o missionário escocês por «lobo» (no meio das «fiéis ovelhas» da Igreja oficial!), eu já sabia. Perguntei-me então por que é que os tradutores responsáveis da Editora Fiel não optaram por uma tradução literal do título do livro em inglês. Creio que o título O Lobo da Escócia teria sido mais sugestivo!
O facto é que Forsyth dedica 74 páginas da sua obra ao trabalho de Kalley na Madeira, substancialmente mais do que a obra de Testa. A segunda parte é dedicada ao Brasil (106 páginas) e a terceira aos últimos dias de Kalley. É nesta obra que ficamos a conhecer e a apreciar a segunda esposa de Kalley, Sarah Poulton Kalley, que conheceu em Beirute, após o falecimento da Margaret em 1851. (É esta Sarah cujo nome aparece em vários hinários das nossas igrejas, como autora de hinos bastante conhecidos).
As páginas de Forsyth sobre o trabalho de Kalley na Madeira constituem uma leitura empolgante. Não há evidência de menos rigor histórico – onde é possível conferir os dados entre os dois livros, os dados apresentados estão de acordo. Talvez devido à natureza das experiências vividas na Madeira, é esta parte do livro de Forsyth que é, para mim, a mais fascinante. O autor revela bastante capacidade de compreender a cultura e o contexto histórico desta Ilha, que nunca foi o foco principal da sua actividade como missionário congregacional. Descreve a paisagem na Ilha, em termos simples, mas muito sugestivos, como os seguintes:
Os camponeses levavam uma vida miserável cultivando os terraços nos íngremes flancos das montanhas. Os poucos que tinham a felicidade de possuir uma vaca não podiam colocá-la para pastar, uma impossibilidade em montanhas tão altas, de forma que elas tinham de ficar presas em cabanas (op. cit., p. 37).