JUSTIFICAÇÃO:
Debates históricos e recentes
Se só Deus é justo e ninguém injusto pode habitar com Ele, como é que eu, que sou injusto, posso estar na Sua presença?»
É uma questão fundamental que qualquer reflexão sobre o Deus do monoteísmo (cristão, judaico ou islâmico) coloca. A resposta do cristianismo, nas suas diversas tradições, é que a justiça tem que ser um presente, dado por Ele. Que a salvação se deve em última análise à graça de Deus, estas tradições todas admitem. Mesmo o catolicismo tradicional não ensina que sejamos salvos pelas obras (embora esta ideia possa estar na mente do povo): entende que a graça é subjacente ao sistema sacramental que nos faz participantes da justiça de Deus. E, no Catecismo de 1993, afirma este princípio:
«A justificação desliga o homem do pecado, que está em contradição com o amor de Deus, e purifica-lhe o coração. A justificação continua a iniciativa da misericórdia de Deus, que oferece o perdão; reconcilia o homem com Deus; liberta da escravidão do pecado, e cura».
Aqui só o leitor atento percebe a diferença de fundo que existe entre a abordagem evangélica e a católica. Ambas afirmam que a justiça é uma dádiva de Deus – só que o catolicismo entende que justificação é Deus nos tornar justos, enquanto os evangélicos mantêm que é uma ação judicial, mediante a qual Deus nos declara justos. A justificação para o católico é um processo que dura toda a vida: nesta vida nunca atingimos o ponto de poder dizer de boa consciência que sabemos que temos a vida eterna. O católico, ensinado a nunca afirmar isto, considera-o quase uma afirmação blasfema: o evangélico, ensinado a fazer a afirmação, por vezes repete-o de cor, sem que isto corresponda à realidade vivida de uma relação com Cristo. Mas aqui não é uma questão apenas de doutrina aprendida: quem nos dá a certeza da nossa salvação é o Espírito Santo que nos convence intimamente que somos filhos de Deus (Romanos 8:15-17). Para o católico os processos da justificação e santificação significam praticamente o mesmo: para ele dizer que já atingiu a justificação seria o equivalente de o evangélico dizer que atingiu a plena santificação.
Uma resposta histórica:
Na sua época Martinho Lutero enfrentou uma instituição gigantesca cuja estrutura financeira dependia do sistema conhecido das indulgências – pagamentos feitos para o cristão, a favor de si próprio ou a favor de outros, poder diminuir as angústias do Purgatório e atingir a justificação desejada. Como frade e professor de teologia, Lutero compreendia que devia amar a Deus acima de todas as coisas. Mas, como Deus era um Juiz severo que pesava as obras e os corações de cada homem, como é que Lutero O podia amar? Quando nos sentimos sobrecarregados com exigências que não conseguimos cumprir, não amamos aquele que exige.
Foi uma nova leitura de Romanos 1:16-17 que libertou Lutero do seu desespero. Esta passagem de Paulo fala de uma justiça que é um dom, não um alvo a atingir. E é um dom judicial – o justo Juiz declarando-nos absolvidos por causa de um Outro ter cumprido a pena ao nosso favor. Ao sentir a maravilha desse perdão Lutero sentiu que tinha nascido de novo e tinha entrado nas portas do paraíso. Tratava-se de uma troca extraordinária: não tendo nós nada para oferecer que pudesse merecer a salvação, Cristo deu a Sua vida por nós e para os efeitos do tribunal celestial fomos «revestidos» com a Sua justiça. Isso porque Ele, não conhecendo o pecado tomou sobre si os nossos pecados (2 Coríntios 5:21).
Lutero entendeu que no catolicismo tinha estado a cometer o erro histórico de Pelágio, a tentar salvar-se a si próprio pelas obras (como alguém a tentar levantar-se do chão puxando pelos cordões dos seus próprios sapatos). Liberto da angústia dessa luta Lutero recebeu a justificação através de um presente de graça, assim podendo desfrutar da certeza da sua salvação. A santificação para ele, e para os outros reformadores, era um processo diferente mas simultâneo: nas palavras de João Calvino, Deus «não justifica ninguém que não santifique também».
Respostas recentes:
A partir da década de 1970, tem vindo a surgir um novo entendimento deste mesmo tema que, pela sua grande divulgação e influência no mundo da teologia, merece a nossa consideração séria. O erudito americano, E. P. Sanders, publicou livros sobre o contexto judaico do Novo Testamento, em que afirmou que Lutero não tinha compreendido bem o contexto em que Paulo vivia e servia. Compreendeu que os judeus da Palestina não eram de modo nenhum pelagianos: não viviam a tentar salvar-se a si próprios pelas obras. Compreendiam que o povo de Deus era o povo do concerto, salvo pela graça, e que as obras eram a maneira de se segurarem na relação com Deus, não uma maneira de entrarem nela. Sanders prova estas afirmações com inúmeros textos judaicos da época de Jesus.
Nos anos 90 um líder da Igreja Anglicana, Nicholas Wright, até há pouco tempo bispo de Durham, excelente escritor (e conhecido pelas suas posições conservadoras sobre outros assuntos), propôs com base nas pesquisas e conclusões de Sanders que a justificação deve ser entendida de outra forma. Para Wright a dádiva da justiça de Deus não tem a ver com o indivíduo angustiado que deseja atingir a salvação e, ao verificar que não consegue, encontra a salvação individual, sendo revestido com a justiça de Deus. Tem a ver com a aceitação que Deus faz de todos os povos gentílicos, por causa da obra de Cristo na cruz, aceitando-os, juntamente com os judeus, como povo do concerto, assim cumprindo Génesis 12:1-3. Somos justificados pela fé nesta realidade – mas a certeza de termos entrado no povo do concerto só será atingida na medida em que correspondermos com os padrões éticos desta justiça. Em rigor não podemos afirmar hoje que já temos a certeza da salvação.
Devo acrescentar aqui que Wright, e muitos outros que defendem esta perspetiva, aceitam a plena inspiração do texto bíblico, mesmo que sobre certos textos-chave, a sua exegese seja substancialmente diferente da habitual.
Esperança ecuménica?
Esta nova abordagem da justificação não coincide inteiramente com a perspetiva católica. Mas o entendimento que Sanders e Wright detetaram, corretamente, entre os judeus palestinianos do século primeiro, da sua relação dom Deus como «povo do concerto», que tentavam segurar mediante as obras, na minha opinião coincide substancialmente com a ideia que o católico praticante comum tem da sua relação com Deus. Afirma-se filho de Deus, nascido de novo mediante o batismo, e desejoso de se esforçar em boas obras, para não perder a graça que lhe foi concedida. Este católico, mesmo reconhecendo que ainda há aspetos não coincidentes com a nova abordagem «evangélica», alegra-se porque os evangélicos já não o estão a ofender com o seu aparente individualismo e com a sua afirmação de terem a certeza da salvação. E o evangélico, se o ecumenismo o atrai, alegra-se numa identidade comum com os católicos – todos sendo de algum modo membros do «povo do concerto».
O fascínio que existe pela nova abordagem, entre muitos cristãos que se identificam como evangélicos, tem a ver com o seu repúdio do «individualismo» herdado de Lutero e as portas que entendem que se abriram para o entendimento ecuménico. Esta «alegria» foi manifestada recentemente (janeiro 2014), por exemplo, pela participação de algumas denominações protestantes em Portugal num acordo assinado com a Igreja Católica para a aceitação mútua dos seus respetivos batismos.
Mas, será que as igrejas se podem entender desta maneira?
Uma pesquisa mais recente:
Em 2006 o conhecido líder baptista, Pastor John Piper, realizou uma pesquisa em Tyndale House (Cambridge, Inglaterra), sobre a justificação, para saber se de facto tinha cabimento esta nova abordagem. Entrou em diálogo com o bispo Wright, havendo sempre entre eles uma atitude de respeito e consideração mútuos. Piper publicou um livro, que não negava o valor das pesquisas históricas de Sanders e Wright, mas que demonstrou que a descoberta de Lutero da salvação mediante o revestimento da justiça divina não só foi a essência da experiência do cristão genuíno em todos os tempos (cf. Agostinho, por exemplo) mas também, e sobretudo, corresponde com o entendimento que o próprio apóstolo Paulo teve da sua conversão.
Quando em 2007 faleceu o pai de John Piper, após 70 anos de ministério como evangelista, Piper relembrou a frase muitas vezes repetida por este servo de Deus (que não realizou grandes pesquisas históricas, mas que conhecia a Palavra!):
«Deus reveste-te com a Sua justiça quando crês n’Ele, dando-te uma vestimenta que te deixa apto para o céu».
Piper concluiu, após uma pesquisa rigorosa, que esta convicção do seu pai que o marcara, expressava a essência da doutrina bíblica da justificação.
Conclusões:
Homens tementes a Deus, no judaísmo e no catolicismo por exemplo, sempre consideraram que faziam parte de um povo do concerto, salvo pela graça, mas com a necessidade de praticar boas obras para nunca saírem dessa relação. O apóstolo Paulo claramente entendia isso, antes da sua conversão (cf. Filipenses 3:1-6). Não é de surpreender, então, que Sanders tenha encontrado inúmeras provas dessa convicção entre os contemporâneos judaicos de Paulo.
A questão que se nos coloca, em relação com a conversão de Paulo, é o que aconteceu para que ele considerasse como «perda», (mesmo como «esterco», Filipenses 3:7-8) aquilo que antes considerara privilégio, fruto da graça divina? Jesus ensinou (João 16:8-11) que o Espírito Santo traz às pessoas a convicção de que existe uma justiça e um juízo que elas carecem. A angústia existencial de Paulo, de Lutero, e de todo o verdadeiro crente anterior à sua conversão, é fruto dessa obra. O Evangelho de Cristo não é apenas uma republicação da teologia da graça no concerto, antes conhecida apenas por judeus. A salvação que se encontra n'Ele é o fruto de um auto-exame tão profundo que nos leva a concluir a todos, sejamos gentios ou judeus, que as nossas justiças, nas palavras de Isaías, são como «trapo de imundície» (Isaías 64:6). Entendemos que Cristo morreu para levar sobre Si todas estas culpas, assim oferecendo-nos gratuitamente a Sua declaração de justiça e fornecendo os meios para algum dia no futuro sermos inteiramente transformados. Assim tornamo-nos «povo do concerto» também: o lado positivo de Sanders e Wright é o facto de salientarem isto.
Não foram só Agostinho, Lutero e Piper (pai e filho) que entenderam a justificação deste modo. Considero que, se abandonarmos esta leitura de Paulo, que a Reforma nos legou, estaremos a distorcer o ensino do próprio Paulo e, mesmo com boas intenções, podemos incorrer o risco de sermos achados a anunciar «outro evangelho» (Gálatas 1:6).