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A Pós-Verdade e a História

No Evangelho de João 18:38, vemos o governador romano, Pôncio Pilatos, a colocar a questão: «Mas que é a verdade?». A leitura do texto obriga-nos a concluir que Pilatos sabia mais do que estava disposto a admitir. Forçado a decidir entre a «verdade» pela qual o povo optou – a libertação do criminoso Barrabás – e a «verdade» real que ele foi percebendo – que Jesus não era culpado – optou pela solução que podia salvar o seu posto. E assim consentiu na crucificação do Salvador.

 

É bastante óbvio que em rigor não há «factos alternativos». A «verdade» do povo nesse momento histórico era tudo menos verdade. Segundo Ed. Stetzer, autor de um artigo em «Christianity Today», o candidato à presidência americana, Mitt Romney, na altura da sua campanha de 2012 contra Barack Obama, desafiou o seu opositor nos seguintes termos: «Senhor Presidente, o senhor tem direito ao seu avião, à sua casa, mas não aos seus próprios factos».

 

Stetzer defende a importância dos factos dizendo:

 

«Os factos são os nossos amigos: porque é que partilhar notícias fabricadas nos leva a fazer figura de estúpidos e prejudica o nosso testemunho».

 

«Se a verdade não nos parece favorável, não temos de ir procurar alguma história contrária. Temos esperança em algo maior. Cremos que a Verdade está personificada numa Pessoa – Jesus».

 

Num excelente artigo na revista «Courrier Internacional» (traduzido de um artigo do jornal inglês, «The Guardian»), Katherine Viner debruça-se sobre a chamada «pós-verdade» e o impacte que as redes sociais têm em fomentar erros e distorções graves da verdade. Menciona o conceito da «bolha de filtro» (termo inventado em 2011 por Eli Pariser) que favorece a divulgação da nossa versão preferida dos factos e torna quase impossível a avaliação objetiva. Esta abordagem é assim (palavras de Daniel Galvão):

 

«Imagine um mundo onde todas as pessoas à sua volta discutem os mesmos assuntos, têm as mesmas opiniões, e, portanto, concordam com você. Ouvem as mesmas músicas, lêem os mesmos livros, trabalham no mesmo setor, etc. Seria tediosamente estranho e perigosamente alienador! Graças ao que ficou conhecido como “bolha de filtro”, esse mundo existe e chama-se internet».

 

No Facebook, diz Viner:

 

«a versão do mundo que encontramos, todos os dias, na nossa própria página pessoal, foi invisivelmente tratada para reforçar as nossas crenças preexistentes».

 

Por exemplo, no dia a seguir ao referendo sobre a permanência ou não do Reino Unido na União Europeia o jornalista Tom Steinberg (que não estava a favor do Brexit) foi consultar o seu Facebook, onde contava encontrar notícias de mais do que a metade do país, que estaria a festejar o resultado. O que encontrou foi o contrário: os lamentos dos que, como ele, eram contra a saída. O alvo do Facebook não tinha sido apresentar factos objetivos, mas sim reforçar as ideias preconcebidas dos vários utentes. Nas palavras de outro jornalista citadas por Viner:

 

«Hoje não é importante a notícia ser verdadeira. A única coisa que importa mesmo é se as pessoas vão lá clicar». Quando, a estas táticas de manipulação, acrescentamos o ambiente de pânico e mesmo de intenção criminosa que muitas vezes existe, apercebemo-nos da gravidade do ambiente de «factos» alternativos e conflituantes que hoje é aceite como normal.

 

Houve na história duas revoluções de dimensões gigantescas no mundo das comunicações: a de Gutenberg, do século XV, e a da Internet (c. 1986-89). Ao longo desse período houve sempre versões diferentes dos factos. Também houve sempre jornalismo popular e mais sério. Toda a informação trazia consigo um elemento de subjetividade, dependendo de fatores como a postura sociopolítica de quem escrevia. Assim de certa maneira sempre podia haver várias “verdades” em conflito sobre qualquer assunto. Mas, antes do período da Internet, a tarefa do jornalista sério foi sempre «conferir e verificar, admitindo quando alguma posição era uma mera opinião pessoal».

 

Quando as notícias apareciam principalmente na página impressa, houve sempre um período de tempo para que os factos das situações pudessem ser esclarecidos e verificados. Com o uso da Internet, e nomeadamente das redes sociais, «foi encurtando – até desaparecer – o período necessário para verificar».

 

Quando o jornal «Daily Mail» publicou em setembro de 2015 a «notícia» de que o então primeiro ministro britânico teria em jovem cometido (no ambiente da iniciação escabrosa na vida estudantil) um ato obsceno com a boca de um porco, havia de facto sérias dúvidas sobre a veracidade da informação. Mas, aparentemente, ter sido ou não verdade não era a principal preocupação de quem publicara a «notícia». Uma jornalista do próprio «Daily Mail» admitiu, numa entrevista na televisão: «não conseguimos aprofundar as informações da nossa fonte».

 

Em 1989 o jornal populista inglês «The Sun», referindo a morte de 96 adeptos num acidente grave no Estádio de Hillsborough (1989), atreveu-se a culpá-los pela sua própria morte, dizendo que tinham forçado a entrada  provocando assim o desastre. Após processos judiciais rigorosos e muito prolongados, movidos pelos familiares de alguns dos que morreram, ao longo de quase 30 anos, esta acusação terminou por ser desmentida. Jornalistas mais sérios ajudaram nesta campanha a favor da verdade. Um à semelhança do profeta veterotestamentário, o «repórter pede contas aos poderosos, em nome dos mais vulneráveis» (K. Viner). Não se dá por satisfeito com meras versões dos factos e insiste que o público tem o direito de conhecer a verdade.

 

Para conseguir o resultado desejado de a Grã-Bretanha sair da União Europeia, a campanha do partido UKIP, liderado por Nigel Farage, tinha feito ampla publicidade a prometer ao povo que, saindo o país da EU, o governo disporia de mais £350 milhões para gastar no Sistema Nacional de Saúde. No próprio dia do Brexit, Farage comunicou que de facto esta informação não tinha sido correta. Mas, aparentemente, na sua perspetiva, estava tudo bem porque o resultado desejado tinha sido conseguido.

 

Katherine Viner, analisando a sua própria profissão de jornalista, afirma também o seguinte:

 

«Muitas redações estão em risco de perder o que há de mais relevante no jornalismo: o ofício valioso, cívico, de andar pela rua, de passar a base de dados a pente fino, de fazer perguntas difíceis, de descobrir coisas que alguém não quer que saibamos».

 

«Não resolver este problema já é equivalente a apoiar ativamente e a financiar a destruição do nosso tecido social».

 

Na realidade a «pós-verdade» é o fruto daquilo que se tem conhecido, ao longo de quase três décadas, como «pós-modernismo». Stanley Grenz («Pós-Modernismo», ed. Vida Nova, 1997) define assim esse modo de encarar o mundo:

 

«Assim, o que quer que aceitemos como verdade, e até mesmo o modo como a vemos, depende da comunidade da qual participamos. Além disso, e de modo ainda mais radical, a cosmovisão pós-moderna afirma que essa relatividade se estende para além das nossas perceções da verdade e atinge a sua essência: não existe verdade absoluta; pelo contrário, a verdade é relativa à comunidade da qual participamos».

 

O «pós-modernismo» - um termo muitas vezes mais restrito no seu uso ao mundo das faculdades (e dos seminários teológicos) - no fundo afirma, tal como a «pós-verdade» que, não havendo uma verdade objetiva, a «verdade» é o que cada um de nós quer que seja.

 

Nos termos mais sucintos, a avaliação de relatos que surgem, no mundo das informações e mesmo nos textos bíblicos, houve três fases. Na fase do Iluminismo (ou Modernismo), havia regras “científicas” racionais, que determinavam se um relato bíblico (ou outro) podia ser aceite como verdade.

 

No Pós-Modernismo, o sobrenatural veio a ser admitido – mas não havia critérios exteriores para decidir que tipo de sobrenatural podia merecer a nossa confiança.

 

Na Pós-Verdade, o “povo” e os seus manipuladores agarraram este princípio subjetivo, passando a medir o valor da informação apenas em função dos seus resultados práticos.

 

Por contraste com as abordagens subjetivistas e pragmáticas, podemos considerar durante alguns momentos o trabalho que Lucas, autor de um Evangelho e dos Atos dos Apóstolos, realizou antes de escrever os seus livros. Na abertura do Evangelho de Lucas (1:1-2) o autor dá evidência, no mínimo, das seguintes caraterísticas: Empenho em procurar evidências oculares e pessoas que transmitiram fielmente os dados sobre Jesus.

 

  1. Os dados passados «a pente fino».

  2. A importância da ordem e da minuciosidade.

  3. A convicção de que a certeza da fé e o conhecimento nunca poderão estar divorciados de e dependem de factos históricos.

 

Na continuação do trabalho do mesmo historiador, em Atos 1:1-3, verificamos que existe exatamente o mesmo empenho. Não existe a noção «modernista» de que só o natural, e não o sobrenatural, pode ser aceite como facto histórico. Vemos eventos como o aparecimento de Jesus ressurrecto, e a sua ascensão ao Pai, a serem analisados com o mesmo rigor e a serem considerados factos, com provas consideradas infalíveis.

 

É extremamente comum hoje a noção de que a subjetividade de um historiador não permite o conhecimento objetivo dos factos que pretende referir. Por exemplo no chamado Sermão da Montanha Jesus fala acerca da pobreza material e do choro em Lucas 6:20-21 e 24-25, mas em Mateus fala sobre estas caraterísticas em termos «espirituais» (Mateus 5:3, 4 e 6). Não serão visões alternativas de dois autores – ou duas tradições diferentes? Será possível chegar a uma conclusão sobre qual destes tipos de visão corresponde à visão do Jesus histórico?

 

Aqui o facto é que há abundantes evidências, em todos os Evangelhos, de Jesus ter valorizado tanto a pobreza e o choro dos materialmente pobres (versão de Lucas) como a humildade, e o choro por causa do pecado, que são as qualidades focadas por Mateus. Assim podemos concluir que ambas as versões, que aparentemente se contradizem, retratam com fidelidade o Jesus que os apóstolos e os evangelistas conheceram.

 

Temos casos de relatos bastante diferentes dos mesmos factos históricos, por exemplo, em livros como 2 Reis e 2 Crónicas. Tanto em 2 Reis 11:1-14:23 como em 2 Crónicas 22:11-25:25 é contada a história do rei Joás – e ambos frisam a dependência do jovem rei do sacerdote Joiada e a sua falta de autonomia. Mas o relato de Crónicas acrescenta dados extremamente graves acerca da atitude tomada pelo rei, inclusive o assassínio do filho do seu mentor, que aparentemente o autor de Reis ignora.

 

O facto é que há dados que podem ser usados por um autor e que, por qualquer motivo, não são usados pelo outro. Podem ser dados que um deles ignora. Podem ser dados que um deles tem algum interesse em não mencionar, mas isso sem em nada transmitir falsidades ou distorcer o retrato que faz da figura histórica em causa. Pessoalmente não encontro contradições entre os diversos relatos que nos oferecem os autores do Velho e do Novo Testamento. Inclusive acho bastante produtiva a confrontação de perspetivas e a oportunidade que nos dá de juntar dados complementares de ambas as fontes (por vezes de três ou mesmo quatro fontes!) permitindo-nos formar uma visão mais ampla do que qualquer um dos relatos individualmente nos apresenta.

 

Existem na verdade de Deus, e no seu mundo, diferentes abordagens subjetivas que refletem a personalidade ou intenções dos historiadores humanos. «Factos alternativos» ou «pós-verdade» não encontramos: nem na realidade objetiva do mundo em que vivemos, nem nas Escrituras fidedignas que o Espírito Santo inspirou sem em nada violentar a personalidade humana dos autores humanos que usou.

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