Nasci em 1950 numa pequena aldeia do norte da Inglaterra, chamada Orton. Orton tinha, e tem, uns 200 habitantes. Só que naquela altura eram quase todos de famílias locais residentes na terra - ao longo de duas ou três gerações pelo menos. Havia um dialeto falado por muitos e um sotaque comum a todos. Quem não tinha o sotaque era recebido pelos locais, mas não era propriamente considerado «um dos nossos» até terem passado umas duas ou três gerações. Quando aos 11 anos fui estudar num internato, apenas a uns 35 kms de Orton, uma das minhas primeiras «obrigações», impostas pelo medo de ser ridicularizado no novo meio, foi deixar de falar com o sotaque local.
O ambiente em Orton e à volta parecia muito sossegado – e os apertos terríveis do período da guerra e do pós-guerra já tinham abrandado. Falava-se de vez em quando na guerra – mas não com muita frequência. O racionamento tinha continuado até bem pouco tempo atrás. Quem combatera, ou mesmo morrera, tinha desejado um mundo em que houvesse paz entre as nações. Agora tínhamo-la – ou pelo menos assim nos parecia, aos mais jovens.
Só recentemente, quando voltei a Orton em julho deste ano (2016), o meu sobrinho John (que tem quase a minha idade), apontou para umas marcas estranhas nos campos adjacentes à aldeia e disse: «aquelas eram as marcas das lagartas dos tanques da Segunda Guerra». As marcas já lá estavam nos anos 50, como é óbvio, mas ninguém me tinha dito o que eram. O John disse também que, até cinco anos antes do nosso nascimento, algumas das estradinhas bonitas e tranquilas perto da aldeia tinham estado cheias de tanques de guerra. Era um tipo de depósito ao ar livre. Também ninguém me tinha dito isso antes.
Num sentido a Primeira Guerra Mundial parecia mais perto de nós do que a Segunda. Isso porque havia – e há – uma placa na parede da «capela» da Igreja Metodista local. Era essa a igreja onde, em criança, tinha aprendido quase tudo o que era mais importante acerca do Evangelho de Cristo, embora só viesse a aceitar de uma forma pessoal anos mais tarde, em jovem. A placa tinha os nomes de quatro homens da aldeia que haviam dado a vida pela sua pátria na Primeira Guerra Mundial. Um deles, William Pallister, era o meu tio.
O meu tio materno, Sidney Bowman, foi combatente na Segunda Guerra Mundial, e sobreviveu para – em ocasiões raras – contar os tempos dramáticos vividos.
Uma situação que o meu pai nunca partilhou comigo foi a das circunstâncias em que, na Primeira Guerra, o meu tio William se oferecera para ir combater. Não tendo ele ainda 18 anos, e tendo o meu pai um pouco mais de idade, deveria ter sido o irmão mais velho a ser chamado para a guerra – e William, o mais novo, a ficar para cuidar das terras. Tomei conhecimento décadas depois, por outros familiares, de que William considerava na altura que John não deveria ir combater – não tendo estofo para ser soldado. Ao declarar a sua idade, William acrescentou alguns meses para ter a honra de servir a pátria. Foi aceite e o meu pai ficou para trabalhar com o meu avô no cuidado da quinta. Pouco tempo antes de a guerra terminar em 1918, William morreu, como tantos outros, em circunstâncias cuja atrocidade só podemos tentar imaginar com base nos relatos históricos e nos filmes de guerra.
Se John não tivesse sido substituído assim por William e se tivesse sido ele a morrer nos campos de batalha em França, muita diferença teria havido na história posterior da nossa família!
Em 2014, John, o meu sobrinho, e a sua esposa Ruth, viajaram a propósito até à região de Amiens, no norte da França para ver o lugar em que o seu tio-avô (o meu tio) tinha sido sepultado. Disseram-me agora que constava na lápide e nas informações disponíveis que William tinha sido condutor, dado que eu também desconhecia.
Somos diferentes uns dos outros. Apesar de já ter visto os cemitérios a perder de vista no norte de França, nunca tinha me ocorrera ir visitar aquele cemitério e aquela sepultura. Via, sim, semana após semana, quando ainda vivia em Orton, o nome de William Pallister, na placa na parede da capela.
Mas sobre as realidades vividas naquelas guerras atrozes pouco chegou aos meus ouvidos. Os combatentes tinham dado a sua vida em prol de um mundo melhor, um mundo de paz. E eu, cinco anos depois de terminado o segundo dos dois «infernos», nasci nesse mundo. E senti paz.
Por que é que alguém me deveria contar coisas que me mostrassem o preço pago por alguns para que houvesse um mundo de paz?
O meu pai, John Pallister, era um homem calmo e um crente convicto em Jesus. Após um curso preparatório, foi recebido como pregador leigo em 1917, ainda no tempo da guerra, continuando a pregar ao longo de cerca de 55 anos. Foi também professor da Escola Dominical. Veio a falecer com 85 anos – em 1981. De todos os pregadores era o que eu gostava mais de ouvir e algumas vezes acompanhava-o às diferentes capelas da zona em que pregava. Por vezes aprendia mais acerca dele e das suas convicções quando ele pregava do que das suas conversas em casa. Mas ele era coerente. Da sua vida como pai e agricultor não podia apontar nada que contradissesse aquilo que ensinava na Escola Dominical e no púlpito.
Mas quais terão sido os sentimentos profundos e recalcados do meu pai – que nem no púlpito deixava transparecer – acerca de um irmão, William, que se prontificara a ir à Guerra no lugar dele (mentindo acerca da sua idade para o poder fazer) e dar a vida que, em circunstâncias normais, teria sido ele, John, a dar?