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Um dos males do nosso tempo de que mais se fala é a xenofobia – o ódio ao estrangeiro. A atitude contrária, normalmente considerada uma virtude, é a «xenofilia» - amor (“filia”) ao estrangeiro, (“xeno”).

 

É verdade que a xenofilia também pode ser um defeito. Por exemplo um povo que se sente inferior afirma por sistema que o produto nacional é sempre inferior ao produto importado e, sem investigar se é realmente a verdade ou não, opta sistematicamente por comprar o produto estrangeiro.

 

Mas aqui quero considerar – e dar testemunho pessoal – da «xenofilia» no seu sentido positivo: algo que reflete a maneira como o próprio Deus encara as pessoas e as culturas de todos os povos.

 

Para mim, um ponto de partida aqui é o facto de que o cristão, com a exceção daquele que é de nacionalidade judaica, é sempre «xeno» na sua origem. Se faz parte da família de Deus é porque «em Cristo Jesus, vós que antes estáveis longe, já pelo sangue de Cristo chegastes perto» (Efésios 2:13). Nunca posso entender que vivo na casa ou na família a que pertenço por direito. Se amo o «xeno» é porque eu sou «xeno» - e sinto como um privilégio enorme ter recebido o prémio imerecido que me torna parte da família. Como posso, então, cultivar sentimentos de oposição a outras raças ou povos que naturalmente estão longe, mas cujos membros também chegaram perto, comigo, pelo sangue de Cristo?

 

A altura na minha vida em que senti com mais impacto a sensação de estar numa casa estranha foi quando, aos 22 anos, fui viver em Valência, Espanha, e trabalhar com o GBU dessa cidade. Sabia que a cultura espanhola era diferente da minha, mas não sabia que era tão diferente. Andei nas ruas da cidade a sentir a angústia de quem tivesse aterrado em outro planeta. E, como a Espanha é uma nação com culturas diversas dentro de si, senti-me desolado também quando, um ano mais tarde, mudei para Castela – para Salamanca que, tendo aparentemente algo em comum como cidade universitária com Cambridge, era extremamente diferente, tanto de Cambridge como de Valência. Em ambos os casos fui recebido com uma «xenofilia» generosa: em Valência por uma senhora crente, meio inválida, em casa de quem fiquei hospedado, e pelos estudantes do GBU (que eram pouco mais novos do que eu). Depois, em Salamanca, por uma igreja que me integrou na sua família. Durante três anos nunca me faltou o convite para almoçar em casa de uma das famílias no domingo. Aprendi muito do que significa ser igreja aprendi com aqueles irmãos, que ficaram para sempre no meu coração.

 

Aquilo que já escrevi da minha história em Portugal deve dar testemunho da riqueza «xenófila» da minha família na fé aqui. Só me interroguei muitas vezes por que é que, sendo eu «irmão» de muitos espanhóis e também de muitos portugueses, essas duas famílias não se sentiam mais irmanadas entre si? Mas aqui algumas leituras da história dos dois povos ajudam-nos a compreender!

 

Apesar disso posso dizer que um grupo de crentes de Salamanca veio ao nosso casamento em Coimbra, em setembro de 1977, alguns deles atravessando aquela fronteira pela primeira vez na sua vida! Também o Secretario Geral (inglês) do GBU espanhol, David Burt, tocou e cantou para nós uma linda canção, da sua autoria, baseada em Rute 1:16: «aonde quer que tu fores, irei eu, e onde quer que pousares, à noite, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus». Ficamos a lembrar-nos mais uma vez também que a «xenofilia» surge do coração de Deus desde sempre – não só na igreja do Novo Testamento.

 

O trabalho do GBU teve a sua componente intercultural desde o princípio. Muitos dos estudantes vinham de ex-colónias portuguesas: do Brasil e mais recentemente da África. De um casal coreano que conviveu connosco em Coimbra aprendemos, entre outras coisas, a gostar da comida preparada com base em arroz e algas – e a festejar os 100 dias do nascimento de um filho. Na nossa igreja também surgiram muitos missionários na fase da aprendizagem da língua – não só de países de língua inglesa, mas também holandeses e alemães - todos eles recebendo uma excelente orientação da Irmã Eunice Machado, esposa do nosso pastor. Em algumas situações tivemos a oportunidade também de os ajudar com questões culturais – mesmo que algumas vezes tenha sido só por eles terem tido a oportunidade de ver os acertos que a Celeste e eu não tínhamos conseguido fazer!

 

Tanto a igreja em Coimbra como a que viemos servir depois em Caldas da Rainha são exemplos da xenofilia que praticamente pode ser considerada parte do fruto do Espírito Santo. Na nossa igreja em Caldas da Rainha, com 59 membros, maioritariamente portugueses, existem também atualmente membros de mais 11 nacionalidades. No passado, no tempo do meu pastorado, chegamos a trabalhar também, com alguma regularidade, com crianças de famílias ciganas.

 

Creio que posso dizer que, dos países da Europa, Portugal é um dos que se tem mostrado relativamente aberto a estrangeiros – repudiando a xenofobia. Quando o populismo de alguns setores na França, Áustria, Holanda, Inglaterra e Estados Unidos renova ondas profundas de racismo – reagindo de modo especial contra imigrantes e refugiados de países islâmicos – a esmagadora maioria dos portugueses está disposta a pronunciar-se contra. Não posso afirmar, no entanto, que seja um país em que a mão de obra barata dos estrangeiros – com trabalho duro em condições más – não tenda a ser bastante explorada. Acusações de tráfico humano têm sido feitas contra algumas empresas agrícolas que aproveitam a mão de obra de jovens nepaleses. Numa plantação de morangos na nossa área fizemos amizade com jovens crentes nepaleses que trabalhavam aí e percebemos o grau de vulnerabilidade e isolamento a que estavam sujeitos. E é do conhecimento público que, de uma empresa que cultivava morangos em Almeirim, no ano passado (2017), um nepalês foi condenado a uma pena de 13 anos e um nepalês e um português a penas de 14 anos, por tráfico humano.

 

Pela graça de Deus, uma comunidade evangélica nepalesa também foi fundada em Lisboa – apesar do facto de a maioria deles, trabalhando em restaurantes, normalmente nunca terem a oportunidade de ter o seu dia de folga ao domingo.

 

Nas igrejas os membros e colaboradores de diferentes origens culturais podem encontrar em dificuldades – quando se trata de colaborarem de perto uns com os outros. O que a uns parece «natural» fica muito longe da cultura de outros! Num casamento de mais de 40 anos, há aspetos culturais que ainda podem causar diferenças entre mim e a minha esposa e têm que ser respeitados. Um inglês residente durante todos esses anos em Portugal não se transforma em português (mesmo tendo pedido agora a nacionalidade dupla!) – nem a sua esposa fica inglesa!

 

Os nossos filhos aprenderam do nosso exemplo a lidar com casamentos interculturais. O mais velho, Richard, é solteiro, mas o segundo, John, cuja primeira língua é o português, casou com uma inglesa, Laura, e reside na Inglaterra. A sua filha, Matilda Rose, então, que nasceu em janeiro deste ano, é só 25% portuguesa! A seguir a Lilian casou com um português, Luís Calaim, (cuja avó é 50% alemã!), de maneira que os nossos netos, Lucas e Lourenço, são quase 70% portugueses!

 

O filho mais novo, Andrew, quis ir mais longe. Recentemente casou com a Eve, de nacionalidade estoniana, e residem atualmente no norte da Inglaterra (há também uma estranha fascinação pelas terras de origem dos pais!). Assim foi introduzida uma terceira cultura, impondo neles a necessidade de mais flexibilidade e «xenofilia» ainda. Os filhos deste casal, se os houver, deverão ser 50% estonianos, 25% ingleses e 25% portugueses.

 

Temos o prazer de afirmar que o nosso Deus, em todas estas situações, deu evidência de ter dirigido estes três filhos nossos na escolha dos seus cônjuges. E que a sua interculturalidade é um valor positivo e não um problema - isto na medida em que se deixem moldar pelo Senhor Jesus. N’Ele «não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há masculino nem feminino; porque todos vós sois um, em Cristo Jesus» (Gálatas 3:28).

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