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Se tivesse nascido uns 30 anos mais tarde, creio que me teria sido diagnosticada a síndrome de Asperger, pelo menos num grau ligeiro. Isolava-me em criança: desenvolvia capacidades mirabolantes, mas quase sempre sozinho – fazer tricô (numa área agrícola no norte de Inglaterra – onde isto claramente era uma atividade só para as meninas!); fazer modelos de palácios e hotéis em cartolina – o que envolvia horas e horas de trabalho minucioso; andar dezenas de quilómetros sozinho, de bicicleta ou mesmo a pé, na zona montanhosa onde vivíamos… Para os desportos mais habituais – como futebol ou «rounders» (um desporto um pouco parecido com o basebol) - normalmente não estava disponível. Nem tinha o mínimo de jeito….

 

E tinha dificuldade em fazer contacto ocular com as pessoas.

 

Mas o que suscitava mais comentários entre familiares – os mais velhos – não era o meu isolamento ou esta dificuldade com o contacto ocular, mas sim as minhas capacidades, especialmente as académicas, fora do normal. E entre os da minha idade, como é natural, alguma irritação com este rapaz da aldeia que tinha a «mania» de ser diferente.

 

Estando em 1973 perto do fim do meu curso na Universidade de Cambridge (licenciatura constituída por dois anos de literatura inglesa e dois de teologia), senti um desejo forte de servir o Senhor em Espanha. Nos últimos anos da escola secundária estudara a língua castelhana, sem ter tido no entanto qualquer desejo de a usar para comunicar com espanhóis (!). O que me motivara era um tipo de curiosidade académica e o estudo do espanhol tornou-se, mais uma vez, um factor de isolamento, uma vez que só tinha mais um colega a estudar comigo.

 

Mas agora em Cambridge, tendo sido levado a conhecer Cristo como Salvador e Senhor, queria usar o meu conhecimento do castelhano a favor do reino de Deus. Queria evangelizar em espanhol.

 

É curioso referir que a minha dificuldade em estabelecer contacto ocular com as pessoas foi a primeira coisa em mim que chamou a atenção da Celeste! Dei uma palestra numa conferência em Áustria (ver «Retalhos – Brexit»). Estava aí como potencial colaborador dos GBU (Grupos Bíblicos Universitários) em Espanha. A Celeste, elemento da equipa portuguesa, diz que não se lembra da palestra, mas lembra-se (ela e os outros estudantes portugueses que estavam com ela) que eu olhava para cima enquanto falava. Os estudantes portugueses brincavam entre si dizendo que eu era o «anjo» - termo que pode ser considerado mais ou menos lisonjeador, mas que mesmo assim, por razões óbvias, não chegou aos meus ouvidos!

 

E depois cada um seguiu o seu caminho. Eu, para Espanha (Valência durante um ano e, depois, Salamanca durante três) e a Celeste para Portugal, onde terminou o curso, deu aulas como monitora na Faculdade e no ensino secundário, e depois foi convidada para ser a primeira obreira portuguesa dos Grupos Bíblicos Universitários no país. Nessa fase a Celeste para mim era só uma entre os estudantes portugueses, cuja língua os isolava de mim e dos espanhóis.

 

O meu primeiro ano em Espanha foi bastante difícil – em parte pelo facto de não se ter concretizado o plano dos GBU de eu ficar integrado numa equipa internacional (situação esta de que só tomei conhecimento quando, em setembro de 1973, cheguei a Valência) e em parte pelo facto de eu vir pouco tempo depois a começar um namoro com uma jovem enfermeira chamada Amparo. Creio que não terei conseguido olhar muito para os olhos da Amparo – mas o seu jeito comunicativo e brincalhão conquistou-me durante um tempo. Se o esfriamento repentino que a Amparo sofreu, pouco tempo depois, foi por eu não ter conseguido fazer contacto ocular com ela, realmente não sei – até hoje!

 

Deus, na Sua gentileza e amor (ver mais em Retalhos - Deus), levou-me a situações de relativo isolamento – mas que me obrigaram a um contacto estreito com Espanhóis. A «koinonia» era o Seu propósito, o Seu ideal. Em Valência, estudantes pacientes e dedicados como Enrique, Tomás, Antonio e Arturo, estiveram disponíveis para me ajudar no que eu precisava. E pouco podia fazer no trabalho sem eles – ou sem o apoio à distância de David e Margarita Burt, coordenadores do GBU e residentes em Madrid. Em Salamanca foi uma colaboradora inglesa chamada Honor Perfect – e uma igreja muito carinhosa (dos chamados ‘Irmãos`) que Ele usou para quebrar o meu isolamento e ajudar-me a cultivar sensibilidade para a cultura rica e tão variada de Espanha. Nessa igreja, as famílias organizaram-se para convidar os colaboradores estrangeiros para almoçar todos os domingos.

 

Durante dois dos anos em que estive em Salamanca, dei aulas particulares de inglês para ganhar o meu sustento. Cheguei à conclusão de que ia ficar por lá – durante toda a vida, se fosse preciso!

 

O então Secretário Geral da IFES (International Fellowship of Evangelical Students), era quem me tinha ajudado inicialmente para ir trabalhar em Espanha. Chamava-se Chua Wee Hian e tinha uma sensibilidade especial para questões de relacionamento e família. Sabendo que a Celeste acabara de aceitar o convite para ser obreira dos GBU em Portugal, sugeriu que eu lhe fizesse uma visita para a encorajar. Depois, alguns outros obreiros da IFES especularam se Wee Hian na altura teria imaginado outro tipo de relação para mim e para a Celeste. Talvez algum dia ele possa esclarecer esta questão. Pessoalmente tendo a pensar que sim – que ele deverá ter pensado nessa possibilidade!

 

Cheguei a Portugal pela primeira vez num dia de fevereiro de 1976. Ao passar a estação de Coimbra-B, no comboio internacional vindo de Paris, não sabia como eram as ligações e fiquei à espera de chegar em breve a Coimbra-A! Como era meu hábito, não perguntei aos revisores – ainda por cima agora estava num país cuja língua não falava! A chegada do comboio a Pombal, bastante tempo depois da hora prevista para Coimbra, obrigou-me a explicar o meu dilema a um revisor. Nesse senhor a simpatia portuguesa manifestou-se em pleno, na atenção que me deu – descendo comigo em Pombal, dando-me o horário do próximo comboio que voltava a Coimbra (Coimbra-B), e assegurando-se com o chefe da estação em Pombal de que eu não teria que pagar o bilhete para voltar.

 

O primeiro português com que convivi em Portugal foi esse revisor – e o primeiro monumento o castelo de Pombal! Mas consegui telefonar à Celeste, explicando-lhe - em espanhol - o que tinha acontecido.

 

Foi bastante agradável o tempo passado na casinha modesta situada na Rua da Mãozinha, n.º 12 (que mais tarde passaria a ser a nossa residência e a «sede nacional» dos GBU). Dirigi um estudo para o GBU de Coimbra, que na altura era constituído pela Celeste e mais dois ou três estudantes – incluindo o Rui Franco que se esforçava imenso no trabalho, mas inicialmente, segundo o seu testemunho, mais motivado pela pena que tinha de deixar a obreira sozinha. Com as minhas ideias fixas – julgava que ia continuar muito mais tempo em Salamanca – não consegui encarar essa situação em Coimbra como mais do que uma colaboração isolada. Mas, para minha surpresa, fui convidado a voltar, para um encontro nacional do GBU, em setembro do mesmo ano.

 

Na altura, na sequência do 25 de abril, esse grupo lutava com sérios problemas de identidade e precisava de conselhos a nível doutrinário. E a pouco e pouco, embora mais rapidamente do que eu, a Celeste parece ter percebido que esta nova amizade poderia vir a ser mais do que um jovem «obreiro», com um olhar de «anjo», a apoiar um pequeno grupo de estudantes evangélicos. A amiga da Celeste, Robélia Laranjeira, brasileira e colaboradora esforçada do GBU de Lisboa, deve ter percebido o mesmo.

 

Nas refeições no Centro Bíblico de Esmoriz, onde nos encontrávamos, os lugares à volta da mesa estavam indicados com molas nos guardanapos - com os nomes dos participantes escritos à mão em cada uma. Estranhei o facto de o meu guardanapo ficar sempre ao lado do que tinha o nome da Celeste. Aconteceu também que caminhávamos a pé, até à praia, discutindo prioritariamente as questões de orientação doutrinária que preocupavam o GBU na altura.

 

E no fim do encontro houve umas mudanças de plano – que na altura também não percebi – que fizeram com que eu não seguisse para conhecer o Porto – e a Celeste também desistisse de ir a essa cidade. Mais um tempinho em Coimbra, a três – a Celeste, a Robélia e eu. Até hoje lembro-me da gentileza da Robélia, que percebia a nossa necessidade de estarmos sós os dois (que na altura eu finalmente também estava a sentir!), e ausentava-se em diferentes momentos para permitir isso.

 

Mas a minha timidez era grande. E aquela ideia fixa que tinha cultivado de trabalhar muitos mais anos em Espanha, também não ajudava.

 

O meu comboio para Salamanca partia de Coimbra-B (agora já percebia a relação entre estas duas estações de Coimbra!). E, minutos antes de ele partir, na sala de espera, consegui declarar os meus sentimentos à Celeste, numa mistura de inglês e espanhol e, creio eu, fazendo pelo menos algum contacto ocular com ela!

 

Haverá outros momentos para contar algumas das alegrias, das tribulações, do embaraço em muitas situações (sobretudo meu) e sobretudo do amor - constante e sempre em renovação - que estes quase 40 anos nos têm dado!

 

Aqui vem a propósito a frase de Antoine de Saint Exupéry, que muitas vezes a Celeste e eu lembrámos:

 

«Amar não é olhar um para o outro, é olhar juntos na mesma direção».

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