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O objetivo deste retalho é, principalmente, reviver e transmitir a alegria que foi para a nossa família quando, num domingo em abril de 1982, celebrámos na Igreja (Baptista de Coimbra) a dedicação ao Senhor de dois dos nossos filhos: Ricardo e John. (Como o relato termina no referido mês, não será a altura ainda para falar na alegria que nos trouxeram também a Lilian, nascida em 1983, e o Andrew, em 1985!).

 

Azoospermia total! Uma palavra nova que tive de aprender num relatório médico que me foi apresentado e que, sendo aplicada à minha situação, pareceu reduzir quase a zero a possibilidade de eu vir a ser pai de filhos. O médico falou na possibilidade de fazer mais exames – considerar algum possível tratamento – etc. Mas fomos adiando. …. E, entretanto, procurámos outra saída.

 

Através de contactos com o “Ninho”, instituição para crianças abandonadas, ligada ao Instituto Maternal em Coimbra, soubemos que um menino que se chamava Ricardo Miguel, com 3 anos e meio, podia estar livre para adoção. Tinha sido abandonado pela sua mãe, jovem solteira, e do pai não se sabia nada. Fomos então conhecer o Ricardo no refeitório do “Ninho”. Tinha um ar compenetrado e sério, enquanto comia a massa com faca e garfo. Dentro de pouco tempo fomos autorizados a levá-lo connosco a casa. As educadoras consideravam que a situação de abandono era irrefutável. Quando saímos, os outros meninos já lhe perguntavam se eu era o pai dele.

 

O Ricardo aprendeu cedo a tratar-me por «pai» (antes mesmo de eu lhe ter sugerido a hipótese) e, a seguir, a Celeste por «mãe». Integrou-se bem no lar, só reagindo negativamente na hora de trocar de roupa. (No Ninho as roupas eram comuns a todos – não eram propriedade exclusiva de nenhum menino. Ele pensava naturalmente que em casa lhe estava a acontecer o mesmo).

 

Quando falámos sobre a possibilidade de ele vir a ter irmãos, disse que estaria tudo bem: «Ponham-nos todos em cima da cama que eu tomo conto deles».

 

Mas, infelizmente, alguns meses, a mãe do Ricardo contestou a declaração de abandono legal e, como tinha havido uma ou duas visitas de uma madrinha ao menino, no período em que ela (a mãe) o tinha deixado, o Tribunal deu-lhe razão.

 

Como a situação se complicava, pedimos a uma senhora idosa da igreja, que vivia num local fora de Coimbra, o favor de o receber em casa durante alguns dias, para o caso de a mãe ou alguém que a representasse, vir buscá-lo à nossa casa. Corajosamente, com riscos para a sua própria segurança, esta irmã (a quem meses depois foi diagnosticada leucemia, de que veio a falecer em pouco tempo) aceitou.

 

A mãe do Ricardo apareceu de facto na nossa casa, dizendo que tinha vindo para levar o seu filho. Dissemos-lhe que isso não seria possível, enquanto não se explorasse melhor a questão em termos legais.

 

De facto, os advogados que nos aconselhavam consideravam que, sem o consentimento da mãe de origem, nunca nos seria concedida a autorização para a adoção - nem sequer a adoção restrita. Considerando que o Ricardo tinha estado numa situação de abandono de facto durante uns 2 anos, sem qualquer visita da mãe, achámos esta perspetiva completamente injusta.

 

O processo que se seguiu foi longo e complexo. O nosso advogado apercebeu-se da seriedade da nossa decisão de adotar quando lhe dissemos que estaríamos dispostos a sair clandestinamente para Espanha (as fronteiras eram bem vigiadas na altura) para tentar legalizar a situação nesse país. Mas então fomos informados de que havia casos, poucos de facto, em que o Tribunal decidia a favor de pais que desejavam adotar, mediante provas da incapacidade humana, moral ou social da mãe de origem para tomar conta do seu filho. Resolvemos tentar encontrar as provas necessárias, uma vez que considerávamos que era essa de facto a situação.

 

Não havendo, na altura, um Serviço Social organizado para resolver este tipo de situação, só poderíamos ser nós a investigar as condições da mãe, agora residente no Algarve. Deu-nos força o facto de a certa altura descobrirmos – por um processo que só pudemos atribuir à orientação divina - uma senhora em Coimbra que declarou algo de que não tínhamos conhecimento: que a mãe do menino o tinha abandonado pelo menos por duas vezes em casa dela, antes de o ter deixado no Ninho.

 

No Algarve, fomos conversar com bastantes pessoas, focando sobretudo antigos patrões da mãe do Ricardo. Julgámos bastante eloquentes os factos que nos foram fornecidos, em todos os casos por pessoas, antes nossas desconhecidas, que, vendo a nossa seriedade e apego ao menino, se prontificavam a ir depor em Tribunal.

 

Como precisávamos de um parecer das autoridades locais, fomos falar com um sargento da GNR no posto mais próximo, que também se mostrou desejoso de nos ajudar. Dissemos que o Tribunal iria precisar de um relatório exaustivo sobre a situação da mãe. Nunca lhe tinha sido solicitado um trabalho desse tipo. Sugeriu que fôssemos nós a juntar os factos, indicando os nomes e moradas de pessoas que podiam testemunhar. Depois ele iria conferir e, caso achasse correto, enviar o relatório ao Tribunal. O documento era longo e pormenorizado. Ninguém no Algarve se recusava a dar testemunho; a referida senhora em Coimbra depois daria também.

 

Havendo advogados de ambas as partes, era necessário estes deslocarem-se ao Algarve para ouvir as testemunhas. Devido aos sucessivos adiamentos, mantivemos o contacto com estas testemunhas, que se conservaram firmes no seu propósito de testemunhar, tendo-se deslocado ao Tribunal onze vezes, acabando o seu testemunho por nunca ser ouvido. Mas também experimentámos generosidade dos nossos advogados, que nos levaram o mínimo possível em despesas de deslocação.

 

Numa dessas idas, na sequência de uma conversa entre advogados, o que representava a mãe do Ricardo resolveu abordá-la novamente, exortando-a a dar a sua autorização para a adoção restrita. E assim foi. O Ricardo veio a ser o nosso filho, por adoção restrita, cerca de 18 meses depois da altura em que fora viver connosco.

 

Entretanto, houve outros acontecimentos significativos na nossa família. Em abril de 1981 o problema da «azoospermia» ficou de repente ultrapassado (sem mais atenção lhe ter sido dado!) quando soubemos da gravidez da Celeste. Não creio sinceramente que fatores psicológicos pudessem influenciar uma situação dessas do lado masculino. Na realidade não sei o que mudou. Sei que Deus agiu, na Sua graça e sabedoria.

 

Na altura o meu pai estava gravemente doente. Mas assim teria o prazer de dar a este filho o seu nome, «John».

 

Em 22 de dezembro veio a nascer o John, com boa saúde, embora a Celeste tenha tido sempre algumas dificuldades mais do que é habitual no período pós-parto. A seguir ao Natal recebi um telefonema a dizer que o meu querido pai devia estar perto do fim da sua vida, razão pela qual tive de deixar a Celeste alguns dias para ir acompanhá-lo e à minha mãe no norte de Inglaterra.

 

Mal tinha chegado a Inglaterra, soube da Celeste que o meu sogro fora internado de repente em Coimbra, devido a uma situação de saúde que só poderia ser envenenamento. Sobre a relação atribulada que o meu sogro teve com a sua segunda esposa, terei outras oportunidades de me debruçar nestes «retalhos». Basta dizer que ele sobreviveu ao que foi sem dúvida uma tentativa de homicídio e, alguns dias depois, pôde ir à casa da Celeste. Entretanto, o meu pai veio a falecer, manifestando a sua convicção acerca da vida eterna que recebera desde que conhecia Jesus como Salvador e Senhor. Tive o privilégio de participar num funeral, num dia gelado de janeiro, em que a nota predominante era de gratidão e mesmo de bom humor.

 

Semanas depois, foram assinados os papéis autorizando a adoção restrita do Ricardo – que passou a ser Ricardo Miguel Miranda Jorge Pallister! Um nome grande como um comboio, como dizia uma avó «adotiva» (a D. Angelina Moreira), sabendo da paixão dele por comboios!

 

Numa das alturas em que tinha parecido que não haveria qualquer hipótese de conseguirmos a adoção, o Ricardo viajava connosco - também de comboio. (Chegou a gostar tanto dessas viagens que um dia, numa delas, nos perguntou: «Quando é que vamos andar de comboio?»). Nessa mesma manhã tinha estado numa Classe de Boas Novas, organizada pela Aliança Pró-Evangelização de Crianças, na nossa casa. E aprendera, pela primeira vez, um versículo bíblico. Nessa viagem sentíamo-nos muito abatidos - mas ouvimos de repente uma voz de menino ao nosso lado dizer «Entrega o teu caminho ao Senhor, confia n’Ele, e Ele tudo fará» (Salmos 37:5). De repente, pareceu que o próprio Deus nos estava a dizer, através do Ricardo, que sim, as dificuldades seriam resolvidas!

 

No domingo em abril, em que o Ricardo com 5 anos e 9 meses, e o John, com 4 meses, foram dedicados ao Senhor, num culto na Igreja de Coimbra, os advogados que nos ajudaram também estiveram presentes, satisfeitos sem dúvida por nos terem encorajado a persistir. E a Isabel, irmã da Celeste, com 20 anos, foi quem fez o bolo especial: um comboio com várias carruagens. Ele representava sem dúvida uma forma de transporte bastante marcante nas vidas tanto de pais como de filhos!

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