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Voltamos aos anos 60: já defini que o plano na compilação destes retalhos não seria cronológico!

 

Como antes referi, quando era criança tinha algumas características preocupantes. Era filho único. Os meus pais devem ter estado mais preocupados do que eu pelo facto de desenvolver sempre atividades solitárias e ser pouco sociável. Verificaram que sobressaía na escola em algumas áreas - e estas tendiam a ser focadas em muitos elogios por professores, tios e amigos da família. Entre os da minha idade, as reações perante os meus sucessos terão naturalmente sido de alguma irritação, que conseguiam disfarçar… algumas vezes!

 

Após uma série de consultas a pessoas informadas, os meus pais - que não tinham tido eles próprios a oportunidade de irem a escolas secundárias - decidiram que uma boa solução seria eu ir aos 11 anos para um internato. A escola escolhida foi Heversham Grammar School, uma escola para rapazes, que tinha 50% de alunos internos e que se encontrava apenas a uns 40 kms da nossa casa.

 

Após um certo fascínio inicial, lembro-me das lágrimas e angústia que afligiam os alunos do primeiro ano, sobretudo à noite no dormitório, chorando com saudades das nossas famílias. Mas estou muito longe ainda de conseguir avaliar devidamente a angústia que os meus pais sentiam por já não terem o seu filho único em casa – e por terem de fazer um esforço financeiro quase incomportável para poderem sustentar uma situação que, humanamente falando, era a última coisa que queriam fazer.

 

Ainda bem que havia um «exeat» (dia para passar com os pais) depois de três semanas e um «half-term» (fim de semana em casa) depois de seis! E ainda melhor quando chegavam as férias de Natal.

 

Durante os sete anos e meio em que vivi nesse ambiente, posso dizer que a escola era de boa qualidade – não só no aspeto académico, mas também no sentido humano. Os professores tentaram compreender as implicações das minhas aptidões académicas e tendências pouco vulgares. Durante uma fase mostrei a vontade de vir a estudar medicina: cuidadosamente fizeram alguns ajustes que permitiriam fazer as disciplinas necessárias para isso. Depois virei-me para o mundo das letras. Como já referi (Retalho D) um professor que era um genuíno entusiasta da literatura inglesa contagiou-me – e o resultado foi que, aos 18 anos, consegui fazer um exame específico que me permitiria ter bolsa de estudos para um curso de Literatura Inglesa em Cambridge. (Mesmo assim, depois de dois anos em Cambridge, viria a fazer uma nova viragem –  na sequência da minha conversão tomei a opção de estudar teologia, opção esta que poderei vir a avaliar em outro «retalho»).

 

O rugby era desporto obrigatório para todos os alunos - e para mim era um sofrimento insuportável. Até hoje os dias mais frios do inverno português relembram-me aquele campo, onde o vento gélido nos trespassava e a chuva que nos ensopava só rarissimamente era considerada motivo para suspenderem a aula de desporto. Para o professor era mais do que óbvio que o meu esforço maior (e o de mais alguns colegas) era dedicado a permanecer o mais longe possível da bola – e dos embates violentos (nos «tackles» e «scrums») entre os que ficavam mais perto.

 

O que nunca compreendi era a razão de um desporto que tanto entusiasmava uns como era detestado por outros, dever ser considerado um critério tão importante para avaliar o carácter ou desenvolvimento humano dos jovens. Havia outros desportos, como o ténis e as corridas «cross-country» que, apesar de eu ser um participante medíocre, despertavam-me no entanto algum entusiasmo. O rugby, que detestava como já expliquei, e o «cricket» (neste caso o problema era a minha simples falta de jeito!), eram considerados critérios incontornáveis para algum ser humano de sexo masculino chegar a ser um adulto bem formado!

 

Foi em parte para tentar compensar estas limitações que atravessei uma fase de procurar sobressair em outras áreas, sem ser só as académicas. Uma foi fazer «records» na arte de sair do colégio à noite, pela janela do dormitório, e andar a pé o maior número de quilómetros possível, voltando antes do amanhecer, sem ser descoberto. Não creio que tenha batido nenhum «record». Mas sei que uma noite, às 4h00 da manhã, foi a polícia que me trouxe de volta ao colégio, juntamente com o colega que me acompanhava na expedição. Um dos polícias apontou uma pilha forte para a janela do quarto do reitor, para o acordar. O reitor explicou-nos que o castigo seria o habitual nestes casos mais graves – aplicado com cana – e perguntou se queríamos receber o que nos era devido na manhã seguinte ou imediatamente. Respondemos que era melhor ser de imediato – e assim foi.

 

Convém dizer aqui que a atual rejeição do castigo corporal nas escolas e nas famílias me parece uma reação exagerada, fundamentada em premissas duvidosas. Supõe-se hoje que a aplicação destes métodos pode ser uma reação de raiva, ou que quem os aplica pode estar desequilibrado ou à beira de se tornar sádico. O reitor da escola era um modelo de equilíbrio e firmeza paciente. E era o único autorizado por lei a usar a cana para bater nos alunos, o que fazia quando necessário e com moderação e sem qualquer manifestação de descontrolo. Não será preciso acrescentar aqui que a aplicação da disciplina e a manutenção dos limites apropriados para o comportamento dos alunos eram conseguidas com muito maior facilidade nesse tipo de ambiente do que costuma acontecer hoje. Longe de ser um «regime de terror», a escola de Heversham era um ambiente em que estimular o aluno, de preferência pela positiva, não era menos valorizado do que é hoje. E os limites bem mantidos na disciplina criavam espaço para os professores terem a possibilidade de usar métodos que permitiam a pedagogia positiva. Provavelmente não será preciso acrescentar aqui que a Bíblia reconhece a «vara» na educação dos filhos no lar (ver, por exemplo, Provérbios 23:13-14). Em Inglaterra, nos anos 60, os pais confiavam às escolas a aplicação justa dos métodos de disciplina apropriados.

 

Não será possível afirmar aqui que a minha escola, ou outras, desconhecessem o problema da homossexualidade, ou mesmo a pedofilia. Como desvios comportamentais deste tipo nas escolas fazem parte de uma cultura generalizada, não só nos nossos tempos, mas em outras épocas da história também, os meus comentários aqui não incidem tanto no facto de ter havido um caso de pedofilia em Heversham (que eu saiba, só um entre 1961 e 1969) como na maneira como ele foi resolvido.

 

Numa noite alguns colegas e eu presenciámos o facto de um professor entrar no dormitório onde dormiam os rapazes, com os seus 13 anos. Fez uma abordagem breve a um dos nossos colegas, palpando os seus órgãos sexuais, e retirou-se de imediato. Era um professor dotado e popular. Sentíamos confusão perante o facto de ele não ter conseguido evitar a tentação de agir assim.

 

O assunto foi investigado com cuidado e discrição. Como testemunhas tivemos de dizer ao reitor o que víramos. Em devido tempo, os pais de todos os alunos internos foram informados – e depois os próprios alunos. O professor foi afastado do ensino na escola, sem deixar de ter laços de amizade com o reitor. Anos depois, como estudante em Magdalene College, Cambridge, recebi de surpresa uma visita, prometida anos antes pelo ex-reitor de Heversham. Ele referiu, com dor óbvia, que lhe custava ver o seu amigo (este ex-professor) ainda numa situação difícil, sem ter conseguido retomar em outro lugar a profissão para a qual tinha capacidades óbvias. Não era muito diferente da dor que um pai ou pastor sente quando um jovem, em situação de pecado, tem de ser objeto de disciplina na igreja.

 

Não será preciso acrescentar que hoje, em Inglaterra e na sociedade ocidental em geral, não obstante a homossexualidade ser muito mais tolerada, uma abordagem pedófila deste tipo seria encarada com muito mais severidade ainda (caso a escola não optasse por tentar abafá-la…. e conseguisse).

 

Quando os meus pais fizeram o primeiro contacto com a escola em 1960/61 perguntaram se havia um grupo de alunos evangélicos. A resposta foi que havia dois irmãos, filhos de um pregador conhecido, que eram alunos e por vezes organizavam reuniões. Depois, raras vezes, reuni-me com eles, mas sem conseguir dar qualquer testemunho convincente de ser crente de facto. Eles davam bom exemplo da sua fé e não exageravam nas suas abordagens evangelísticas com colegas. Os meus pais naturalmente terão sentido algum desânimo com a minha falta de progresso nessa área, que para eles era tão vital. Mas Deus graciosamente providenciou depois três professores com simpatias evangélicas, um dos quais veio a ser o novo reitor.

 

O «cristianismo» praticado e ensinado em geral na escola não passou de um formalismo, socialmente respeitável, com aspetos éticos ensinados e observados em parte. O facto de termos sido obrigados a ir em fila aos cultos todos os domingos de manhã na paróquia local não providenciou qualquer estímulo para uma aceitação pessoal de Cristo como Salvador e Senhor; antes tendia a afastar-nos mais.

 

O teólogo Wayne Grudem, dentro da tradição reformada, chama graça comum à «graça de Deus pela qual ele dá às pessoas inumeráveis bênçãos que não fazem parte da salvação». Cheguei ao fim dos meus oito anos em Heversham bastante mais ateísta (ou agnóstico) do que tinha sido antes. Mas tinha recebido sem dúvida muitas dessas bênçãos. As sementes do Evangelho já tinham sido lançadas na minha vida antes dos 11 anos – e, de diversas maneiras, continuaram a ser depois. E as lições de vida que aprendi numa boa escola - com todas as suas limitações – são para mim exemplos significativos desta graça pela qual só me posso sentir agradecido.

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