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Quando em setembro de 1976 comecei o namoro com a Celeste, percebi logo que havia uma situação que podia ser um desafio especial para nós. A irmã da Celeste, Isabel, então adolescente, vivia com ela e não parecia preparada para ver a Celeste começar a focar as suas atenções noutra pessoa! A Isabel, como criança, tinha sofrido, muito mais ainda do que a Celeste, na altura da doença prolongada e do falecimento da mãe. Quando o pai lhes disse que ia voltar a casar, ambas reagiram negativamente, conscientes de que era um casamento que só iria trazer problemas. A Sr.ª Ana era uma pessoa de trato difícil, no que parecia crente só de nome: ninguém percebeu como é que o meu sogro, crente dedicado, tinha vindo a simpatizar com ela. E a Celeste tivera a frontalidade de transmitir diretamente ao pai, com todo o respeito, o desagrado que sentiam (não tanto pelo casamento em si, mas pela pessoa envolvida).

 

A Sr.ª Ana achava que a Isabel devia ir viver com o pai e com ela. Mas não tardou muito que ficasse claro que essa não podia ser a solução. Ver uma adolescente infeliz, a fechar-se cada vez mais em si própria, e saber que tinha razões válidas para isso, levaram a Celeste e o Carlos (o irmão mais velho) a não acharem que seria minimamente adequado tentar impor-lhe essa solução. Depois de falarem com o pai, este concordou com a sugestão de a deixarem escolher viver com um dos irmãos, tendo ela optado por continuar a viver em Coimbra, na mesma casa com a irmã. Naturalmente esta opção foi bem aceite por todos também por ser menos desestabilizadora, para ela se manter no mesmo contexto (casa, igreja, escola) em que já estava integrada.

 

Mas agora, poucos anos depois de perder literalmente a mãe e a seguir «perder» de outra maneira o pai, a Isabel, adolescente, iria também «perder» a sua irmã!

 

Perguntei à Celeste como é que eu poderia contribuir para resolver a dificuldade que o nosso namoro colocava à Isabel. A resposta de certa maneira parecia simples: «manda-lhe um postal com um pôr de sol: ela gosta muito». Pareceu-me que a verdadeira solução para o problema devia ser mais complicada do que isso, mas (à falta de um pôr de sol) comprei um postal com uma foto de Salamanca à noite e mandei-o à Isabel com uma pequena mensagem (em espanhol). Os correios na altura não eram muito rápidos – mas algum tempo depois entendi da Celeste que a solução tinha sido perfeita. A Isabel já simpatizava com o seu futuro cunhado! Nisso vimos que o Senhor estava a abrir o caminho para ela viver connosco.

 

E foi assim que, vivendo na casa que estava alugada em nome do pai, era como se, no princípio da nossa vida conjugal, a Celeste e eu tivéssemos uma «filha» com 15 anos!

 

A Isabel na altura já tinha assumido de uma forma muito clara o seu compromisso com Cristo. E tinha uma mestra que admirava – a D. Violeta Lopes, também residente em Coimbra, fundadora e diretora da Aliança Pró-Evangelização de Crianças. Mas a sua carência afetiva era grande – e também a frustração que sentia por ter pai, mas ao mesmo tempo sentir que o tinha perdido. Academicamente, tinha algumas dificuldades e o facto de os dois irmãos terem tirado cursos universitários também não ajudava na sua autoestima. O pai visitava as filhas regularmente e deu-lhes amplas provas do seu amor e diligência em fazer tudo o que podia para as apoiar. Mas, o que não podia fazer não fez: voltar atrás no tempo e dessa vez não casar com a Sr.ª Ana!

 

Mais tarde, a Isabel, com duas amigas, organizou um pequeno espaço para receber crianças de mães que trabalhavam fora de casa, usando salas que lhes foram cedidas para o efeito no 1º andar da Igreja Baptista de Coimbra. Fez um trabalho de qualidade com os pequeninos, revelando a sua criatividade e mostrou também uma tendência especial (que nós desaconselhávamos, por razões que nos pareciam óbvias!) de tentar ser conselheira matrimonial em casos em que os pais das crianças, ou outros adultos, estavam desavindos.

 

Depois ocupou um andar que a minha mãe tinha comprado em Coimbra (não ficando muito tempo a habitar a casa, devido a uma doença grave que sofreu e que levou à sua morte em 1989). Aqui, sim, a Isabel tinha todo o nosso apoio: os quartos eram alugados a estudantes universitárias. Nós precisávamos de receber os alugueres para suplementar os nossos rendimentos – a família estava a crescer! E a Isabel tinha o lugar gratuitamente, mas, como em tudo o que ela fazia, via na situação um ministério a cumprir.

 

Já foram referidas, no Retalho F, as circunstâncias em que o pai da Celeste e da Isabel quase perdeu a sua vida em 1981. Nessa altura, a Celeste e eu, com o recém-adotado Ricardo e o recém-nascido John, mudámos para Lisboa, para ocupar a residência que fazia parte da sede do GBU. Nessa fase (anterior ao uso da casa da minha mãe) a Isabel pôde viver com o seu pai, na casa que nós tínhamos ocupado em Coimbra. O pai estava separado da Sr.ª Ana, mas nunca encarou a hipótese do divórcio (embora ela quisesse). Sozinha, revoltada e devorada por ciúmes pela atenção que o seu marido dava às filhas, a Srª. Ana sofreu um ataque cardíaco em casa. Como ninguém a costumava visitar, nem sequer os seus irmãos (alguns dos quais moravam localmente), o seu corpo só foi descoberto em casa por vizinhos, alguns dias depois. O meu sogro ainda sobreviveu uns 25 anos depois deste acontecimento.

 

A Isabel nunca fez segredo do seu desejo de casar. O seu compromisso no ministério cristão ia sempre a par dessa vontade – mas ela punha de parte todo o relacionamento que pudesse interferir com esta sua primeira lealdade. Aparentemente não surgiu até hoje a pessoa que pudesse partilhar o ministério com ela.

 

Ainda em Portugal, a Isabel serviu com o Centro de Literatura Cristã, em Coimbra, com a Aliança Pró-Evangelização de Crianças, em Loures, e, depois, especialmente em campanhas evangelísticas, com a Liga do Testamento de Bolso. Não achou fácil ter de lidar com tarefas administrativas, preferindo sempre a evangelização pessoal e o aconselhamento, mas fazia-as com cuidado quando era preciso. Surgiam contactos com pessoas interessadas ou que tinham manifestado a decisão de seguir Cristo, nos mais diversos lugares e, algumas vezes, ela pedia a nossa ajuda para acompanhar as pessoas a seguir. Esteve vários anos seguidos em equipas de evangelização entre os peregrinos a Fátima e, pelo menos numa ocasião, uma senhora que evangelizou nessa situação converteu-se a Cristo.

 

Desejando preparar-se melhor para o ministério cristão a Isabel frequentou e completou o curso básico de teologia no Seminário Baptista em Queluz. Assim, além de ser o seu cunhado, tive a oportunidade, em algumas das disciplinas, de ser o seu professor. Quando chegava à altura da festa de Natal dos alunos, um dos jogos (dos vários que a Isabel introduziu) foi professores e alunos serem transformados em «múmias», sendo embrulhados em papel higiénico. Não me lembro, antes ou depois desse tempo, de ter havido um ambiente mais divertido nas festas de Natal, no Seminário onde leciono!

 

Durante um tempo, a Isabel integrou-se na Igreja Baptista de Miratejo e acompanhou uma fase atribulada que a igreja atravessou. Embora tenha sido bem acolhida e ajudada por pessoas dessa comunidade, a base do seu sustento era «a fé» (no sentido de certo modo clássico entre evangélicos, de não ter literalmente nenhuma entrada garantida!).

 

Entretanto, o desejo da Isabel de servir como missionária em outro país foi crescendo no seu espírito. O Brasil era uma hipótese que parecia óbvia, devido à língua e, em parte, ao facto de ter familiares nesse país. Mas numa viagem aproveitou para visitar o México também – e nasceu a sua paixão por este país grande, de língua espanhola, cujos problemas a nível de instabilidade social e crime são conhecidos de todos. Sugerimos, na altura, que ela se candidatasse para trabalhar com a recém-fundada MEVIC («Missão Evangélica Intercultural») e o Pastor Paulo Pascoal (simultaneamente diretor do Seminário e da MEVIC) acolheu a ideia com grande simpatia, convidando a Isabel a transferir-se para a então Igreja Baptista do Murtal, que na altura o Pr. Paulo pastoreava.

 

Em março de 2008, a Isabel mudou definitivamente para o México. Serve, como servia aqui, com crianças de bairros pobres e na igreja atendendo a todo o tipo de necessidade, nomeadamente a nível de aconselhamento (área que desde cedo e mesmo na sua inexperiência mostrara inclinação!).

 

A sua história, contada por ela própria, pode ser lida num capítulo do livro «Mulheres em Missão», de Bertina Coias Tomé, ed. 2015, Mulher Criativa.

 

Quem acompanha uma vida assim – eu a partir dos 15 anos da Isabel e até aos 55 e a Celeste desde que ela nasceu (!) – percebe que está na presença de uma história que está a ser escrita por Outra Mão. As oportunidades que a Celeste e eu tivemos de acompanhar a Isabel foram mais do que suficientes para nos apercebermos das suas fragilidades e lutas. Mas, tendo ela descoberto o segredo de se gloriar nas suas fraquezas, para que o poder de Cristo repouse sobre ela, temos a sensação de que essas fraquezas só tornam mais admirável a manifestação da graça de Deus na sua vida.

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