Uma experiência marcante para nós, nestes últimos anos, foi conhecer a Ilha da Madeira. Em 2016, ficámos alguns dias hospedados em Santa Cruz, e fomos surpreendidos por uma festa popular na praça ao pé da pensão, que começou a celebrar o 1 de dezembro pelas 6 horas da manhã, com renovado entusiasmo, depois de alguns anos de pausa! Ficámos deliciados com o sol e as nuvens que se alternavam na encosta do Pico do Areeiro e com uma perspetiva magnífica, nova para nós, do Curral das Freiras visto de cima.
Estávamos na ilha para participar na despedida do casal americano Edgar e Abigail Potter, fundadores e depois líderes durante 40 anos da Igreja Baptista do Funchal, e o exame e consagração do novo pastor da igreja.
A Ilha da Madeira tinha ganhado vida para nós muitos anos antes de a termos visitado pela primeira vez. Isso foi através do nosso «encontro» com o missionário escocês, Robert Reid Kalley, que tinha servido o Senhor na ilha no século XIX, sendo a sua obra narrada no livro, «O Apóstolo da Madeira», de Miguel P. Testa, da Igreja Evangélica Presbiteriana, 1963 (reeditado em 2005).
O casal Robert e Margaret Kalley tinha chegado à Ilha em 1838, após ter tido de desistir do plano de serem missionários na China, por motivos da saúde da esposa. Kalley licenciara-se em Medicina e Cirurgia pela Universidade de Glasgow e vieram nomeados como missionários da Igreja Livre da Escócia.
Desafiava-nos o facto de Kalley entender que podia servir o Senhor, de uma forma integral, como médico cristão. Em 1840 instalou no Funchal, por sua conta, um hospital com doze camas, incluindo serviços de clínica e farmácia. Para poder dar assistência médica gratuita aos pobres, cobrava valores elevados aos ricos, muitos dos quais se afastaram por esse motivo. O casal abriu também escolas elementares para crianças e noturnas para adultos. O livro principal de estudo era a Bíblia, que fizeram chegar aos milhares, uma vez que antes disso só existiam na ilha 80 volumes (enviadas pela Rainha D. Maria II para uso exclusivo do clero).
Desafiava-nos a forte ênfase de Kalley na pregação do Evangelho. Chegou a haver multidões de entre 2000 e 5000 nos cultos dominicais, muitos dos assistentes atravessando montanhas de 1000 metros de altitude tanto para irem ao Funchal como para voltarem a casa à noite.
Desafiava-nos a persistência do movimento evangélico que surgiu, face à oposição do clero católico. Kalley passou a ser chamado o «lobo da Escócia» e os adeptos «hereges calvinistas». Chamou-nos a atenção o facto de Kalley ser identificado (sem dúvida corretamente!), como «calvinista», tendo ele um ministério tão fortemente evangelístico. O facto é que muitos evangélicos atuais, não compreendendo o calvinismo, dizem que a doutrina da predestinação desencoraja a evangelização!
Tanto a nível dos serviços médicos, como a nível da educação, o trabalho de Kalley sofreu sérias restrições. Em 1845 o Tribunal de Lisboa declarou criminoso a cidadãos ingleses «doutrinas contrárias à religião do Estado». As autoridades locais, invocando uma Lei Inquisitorial datada de 1603, contra a heresia, ordenaram a prisão de Kalley no Funchal, onde permaneceu durante seis meses.
Em agosto de 1846, a Margaret foi conduzida, sob disfarce, à sua casa no campo, onde se escondeu. Ao mesmo tempo Kalley, disfarçado de mulher doente, foi posto a bordo de um navio britânico que o levou à ilha da Trindade, nas Antilhas. Aí, mais tarde, a sua esposa pôde reencontrar-se com ele. A grande maioria dos convertidos também fugiu da ilha, vindo depois a constituir núcleos de novos trabalhos iniciados nas Antilhas, no Brasil e nos Estados Unidos.
Na realidade, o trabalho evangélico nunca se extinguiu na ilha. Chegaram depois mais obreiros da mesma denominação, da Igreja Metodista e, em meados do século XX, das Assembleias de Deus.
Mas quem nos convidou para conhecermos diretamente esta fascinante ilha foi o segundo casal que aqui mencionei: Edgar e Abigail Potter. Eles chegaram em dezembro de 1976, enviados pela Igreja Baptista de Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo Brasil. Na vila de Santa Cruz fundaram um pequeno grupo que, em 1981, foi organizado em igreja autónoma. Cinco dos seus membros eram da família Potter e três eram madeirenses. Depois a igreja mudou-se para o Funchal, onde um trabalho árduo e persistente de evangelização foi realizado, de maneira a haver crescimento gradual até ao presente, altura em que existem aproximadamente 50 membros na igreja, de idades muito diversas.
Desde que a conhecemos achámos o ambiente da igreja caloroso e acolhedor. O Pastor Edgar e a sua esposa ofereceram-nos gratuitamente por duas vezes o uso do seu apartamento em Santa Cruz: na segunda ocasião, em 2010, aproveitámos para convidar os nossos filhos (alguns dos quais ficaram hospedados em outro lugar!) para a celebração dos meus 60 anos. Em ambas as ocasiões o casal emprestou também o seu carro, para podermos deslocar-nos à vontade e conhecer a ilha inteira.
Entendemos que, nos primeiros anos, à maneira do casal Kalley, a hostilidade do clero católico e de outros madeirenses, tornou dificílimo o trabalho do casal Potter. Mas sobre isto falavam pouco e a falta de dados mais concretos não nos permite dizer mais.
Mas a luta deste casal passou também por uma área diferente: a do sustento financeiro que vinha principalmente da sua igreja de origem nos Estados Unidos. O casal Potter cultivou uma atitude de amizade e comunhão com evangélicos de outras denominações que essa igreja baptista americana não compreendia. Numa fase ela reduziu o seu compromisso para sustentar o casal em 50%, avisando que poderia cortar totalmente.
Como o casal Potter não podia em coerência deixar de praticar a comunhão aberta a crentes evangélicos, a igreja americana acabou por avisar que iria cortar totalmente o seu sustento. O nosso bom amigo Pastor Edgar costuma contar, com lágrimas nos olhos, que foi no mesmo dia em que receberam esta comunicação que foram contactados, inesperadamente, pela Embaixada Americana fazendo-lhe o convite para ser o Cônsul americano na ilha! Assim, de outra maneira, tinham o seu sustento garantido para poderem continuar o trabalho da igreja.
Quando visitámos o Pastor Edgar, ele servia diligentemente nas duas áreas, mantendo, no entanto, uma noção de que em primeiro lugar era missionário e pastor. Os muitos contactos que tinha permitia uma esfera de influência vasta na ilha, tanto com estrangeiro como com portugueses (inclusive com o antigo Presidente Alberto João Jardim, que morava na mesma rua em que estão as instalações da igreja!). Os cultos dominicais eram em língua inglesa, portuguesa e russa, sendo o Pastor Edgar o pregador principal em todas estas três línguas.
Em dezembro de 2016, despedimo-nos deste amado casal. Ao mesmo tempo pudemos participar na consagração do novo pastor da igreja, José Carlos Gonçalves, português de nacionalidade e residente na ilha há mais de 20 anos.
Um amigo nosso declarou que se Robert Kalley foi «O Apóstolo da Madeira» no século XIX (sem as conotações católica ou «carismática» que esta palavra por vezes tem!), Edgar Potter pode ser considerado «Apóstolo» na ilha no século XX.