No dia em que escrevo tive uma surpresa. Encontrei no correio uma carta, com o nome e a morada escritos à mão e com selo, enviada por um casal de colegas na Missão de que somos associados (European Christian Mission) da terra alentejana onde eles residem há pouco tempo – Mourão. Não resisti à tentação de abrir logo o envelope. Dentro vinha uma foto minha, com a Celeste, à sombra de um sobreiro em Lavre, também Alentejo, e um postal. Era dos nossos amigos, Mike e Daveen Wilson, que a tiraram quando estiveram connosco há pouco tempo numa reunião nesse local.
A minha reação explica-se em parte pela idade! Aos meus 66 anos sabe muito bem receber uma foto e uma carta enviadas desta maneira! No mundo dos mais novos, uma foto é tirada com o telemóvel, enviada por email ou Facebook, com muitas outras, e a despesa e o incómodo são incomparavelmente menores. Quem é que hoje se dá ao trabalho de fazer as coisas como o casal Wilson fez – e como era normal até há alguns anos?
Há razões válidas que tornam um gesto destes tão simpático para um casal mais velho. Mesmo que tenham a ver também com sentimentos. (E desconfio que haja bastantes pessoas mais novas do que nós que também partilham esta maneira de sentir).
Somos cada vez mais confrontados por situações em que o que é «velho» é sujeito a comparações desfavoráveis com o que é «novo». A questão não é sujeita a qualquer tipo de discussão: é tomada como dado assente. O resultado é que, se se quer dizer que uma ideia não presta, chama-se «velha» e se se quer dizer que é muito interessante, e quase de certeza deve ser aceite, será suficiente dizer que é «nova».
Existe um livro (*) que tem base num diálogo imaginado, logo após a morte (que sucedeu de facto em exatamente no mesmo dia, 22 de novembro de 1963) dos autores ingleses, Aldous Huxley (agnóstico) e C. S. Lewis (cristão), e do presidente americano (humanista), John F. Kennedy. Lembro-me bem desse dia: tinha 13 anos e estava no colégio em Heversham quando a notícia do assassínio de Kennedy abanou o mundo. (Na altura eu não sabia quem eram os outros dois, nem me lembro de os ter ouvido mencionar - até alguns anos mais tarde!)
A dado momento Peter Kreeft coloca na boca de Kennedy e Lewis um diálogo em que Kennedy acaba de chamar as ideias de Lewis sobre Jesus muito «ultrapassadas». (A tradução é minha).
Lewis - Jack, quando queres saber que horas são, usas um relógio ou um argumento?
Kennedy - Um relógio, obviamente.
Lewis - E para que é que usas um argumento?
Kennedy - Para provar alguma coisa. Ou para tentar fazer isso, pelo menos.
Lewis - Usas um relógio para saber a hora e um argumento para provar alguma coisa?
Kennedy - Entre outros meios, sim.
Lewis - Mas, ainda há pouco, estiveste a tentar estabelecer a verdade por meio de um relógio.
Kennedy - Por meio de um relógio?
Lewis - Quando eu quero desmentir uma ideia, tento provar que é falsa. O teu argumento contra a minha ideia de que a tua crença era heresia foi simplesmente que a minha ideia era velha. Ultrapassada, creio que disseste. Medieval e primitiva foram dois dos termos que usaste. Essas são todas palavras do relógio ou do calendário. Afinal, os calendários são apenas relógios grandes e compridos!
Kennedy; Vejo que o Aldous fez muito bem em me avisar de como é que tu eras!»
Imediatamente antes desta secção do diálogo, «Kennedy» defende que Jesus era apenas um homem esclarecido e um grande exemplo moral. Chama à fé de «Lewis» na divindade de Jesus uma ideia ultrapassada – medieval e primitiva. «Lewis» responde que a ideia de Kennedy aqui é de facto a ideia mais velha, tendo sido a posição dos arianos muito antes do período medieval! A questão é estabelecer a verdade de uma posição ou outra através de argumentos, não afirmar que uma ideia é mais velha do que a outra, como se assim se pudesse estabelecer o seu valor (ou falta dele).
Quando em 1971 mudei de cursos na Universidade – de Literatura Inglesa para Teologia – fui confrontado com ideias aparentemente novas. Da formação religiosa que recebera – dos meus pais e dos pastores metodistas na nossa zona, entre outros – tinha entendido que Jesus era Homem e Deus, que tinha realizado milagres na terra e que tinha ressuscitado de entre os mortos. Tinha entendido que, a seguir à nossa morte, haveria um Dia do Juízo, e que os salvos estariam eternamente com o Senhor e os condenados sofreriam eternamente, separados d’Ele. Mas agora a maior parte dos professores abraçavam um liberalismo (bastante radical) em que nenhuma destas posições era aceite. As «recentes descobertas» da crítica bíblica científica descobriram o Jesus real – um ser humano cuja «divindade», nos credos da igreja, foi de facto o resultado da evolução gradual do dogma na mente dos crentes da Igreja Primitiva.
Estas ideias realmente eram novas para mim. Mas não será preciso dizer que (além de serem uma versão teologicamente um pouco mais sofisticada das ideias que «Kennedy» quis defender no seu encontro com «Lewis») não eram nada novas na realidade. Foram essencialmente as mesmas ideias que surgiram como «novidade» em teólogos como Strauss e Wellhausen no século XIX. E que surgiram também nos socinianos e outros no tempo da Reforma. Como já vimos, ainda antes do período medieval, os arianos (incluindo os visigodos da península ibérica!) tinham defendido posições parecidas.
É curioso que ouvimos algumas vezes, na atualidade, de um pregador que descobre «verdades» que apregoa como novas. O universalismo, por exemplo, (a crenças de que todos os homens terminarão por ser salvos), aparentemente defendido - ou pelo menos admitido como hipótese - por Rob Bell e outros, já encontrou adeptos em figuras tão antigas como Orígenes (c. 185-254 d.C.).
A nível ético sucede o mesmo. Quando algumas vezes hoje, em alguns círculos, afirmamos que Jesus ensinava contra o divórcio (a não ser por motivos de pecado sexual), ou que a Bíblia ensina que a prática das relações homossexuais é pecado, a resposta comum é que pensamos assim por causa da geração a que pertencemos. Hoje, dizem as pessoas, estamos num mundo diferente em que os mais «novos e esclarecidos» entendem que Jesus e os apóstolos não podem ter sido tão discriminatórios e legalistas nas suas posições. Quando ainda queremos afirmar que o ato sexual deve ser restringido ao casamento, a resposta é que os tempos estão a mudar e ninguém hoje acha isso importante.
Nos anos 60 surgiu, na Inglaterra, uma chamada «Nova Moralidade», influenciada pela Ética da Situação, e defendida por um dos meus professores na Faculdade – John A. T. Robinson. Essa «nova» moralidade, advogada por muitos de uma geração bastante mais velha do que a nossa, era essencialmente o que alguns hoje, no século XXI, estão a afirmar como sendo nova. Mas, na realidade, «não há nada de novo debaixo do sol», como disse o sábio escritor de Eclesiastes (1:9).
Uma das surpresas que enfrentámos, quando chegámos em 1991 para pastorear a Igreja Baptista de Caldas da Rainha, foi a veemência com que alguns «crentes», bastante mais velhos do que nós, argumentavam estas posições consideradas mais «evoluídas» - em matéria de ética sexual. E, para nossa satisfação, vemos hoje uma geração nova de jovens crentes em Portugal, seminaristas e outros, que assumem aquilo que Jesus e os apóstolos realmente ensinaram sobre estas questões e com toda a seriedade. Com certeza absoluta não é o relógio ou o calendário que nos podem ajudar a saber quais são as posições a serem consideradas mais corretas!
Achamos cada vez mais divertido este desejo de muita gente mais nova de usar «o argumento do relógio», rotulando o valor de ideias e pessoas como se dependesse da sua antiguidade ou novidade. É verdade que há movimentos muito antigos – como os «puritanos» por exemplo – que nos surpreendem com o vigor e aparente atualidade da sua visão do homem, da família e da sociedade. É verdade que, algumas vezes, julgamos que hinos nas coletâneas antigas contêm mais doutrina bíblica do que coros novos que vão surgindo. (Mas, em alguns casos concretos, vemos claramente que os novos são preferíveis!).
Contudo, sem dúvida, como C. S. Lewis, preferimos estabelecer a verdade de ideias e crenças por argumentos – e não pelo relógio! É por isso que voltamos com convicção cada vez maior ao «cânone» da Sagrada Escritura, «soprada por Deus», que em todo o tempo foi e sempre será a melhor base para estabelecermos doutrinas e princípios éticos cristãos («proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça» - 2 Timóteo 3:16).
(*) A Dialogue Somewhere Beyond Death Between John F. Kennedy, C.S. Lewis and Aldous Huxley, de Peter Kreeft, ed. IVP, 1982.