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Ao longo da vida senti e manifestei zelo pelas minhas convicções de diferentes maneiras. Hoje o zelo, mesmo o dos crentes mais dignos, é considerado suspeito. Levantar a voz, manifestar agitação nervosa ou confrontar alguém com convicção são atitudes que rapidamente convidam a que nos classifiquem como fanáticos, ou no mínimo neuróticos. E a capacidade de «gerir crises», evitando a confrontação direta (capacidade esta que é, sem dúvida, positiva em algumas situações) é a que é mais facilmente louvada.

 

 

O zelo que pode ser justo (mas nem sempre é):

 

Como o nosso Deus é identificado, nos Dez Mandamentos, como um Deus zeloso (Êxodo 20:5), tive de concluir que as emoções fortes que senti e, depois de alguma luta interior, manifestei eram em alguns casos justificáveis. Identifiquei-me com Jesus que fez um azorrague e expulsou os vendilhões do templo, lembrando aos seus discípulos o salmo que diz «O zelo da tua casa me devorou», João 2:13-17.

 

 Senti algo deste zelo quando professores de teologia na Universidade de Cambridge, muitos deles ministros ou mesmo bispos da Igreja Anglicana, faziam publicidade do facto de não acreditarem em doutrinas fundamentais da fé cristã (criação, ressurreição, etc.). Achavam que ninguém intelectualmente desenvolvido poderia hoje acreditar na Segunda Vinda de Cristo e, muito menos, na condenação eterna dos ímpios.

 

Irei-me por vezes. Nesses casos na universidade tentei usar trabalhos escritos para reagir – tentando usar algum tato e argumentar com cuidado. Mas nisto creio que uma dose de «ira santa» teria – e tem – todo o cabimento. Talvez me devesse ter irado mais!

 

Mais tarde, durante anos depois em que, como pastor, senti a oposição de membros da minha igreja a doutrinas bíblicas que ia expondo, foi difícil lidar sobretudo com o ambiente de quezília e contestação indireta. Algumas vezes outras objeções à minha pessoa eram usadas como pretexto. Outras era a minha família que sofria. Era preciso com frequência um auto-exame cuidadoso para distinguir entre aquilo que podia ser melindre a nível pessoal – nisso Jesus manda dar a outra face – e aquilo que era ira justa. Esta ira justa podia ser a minha reação perante pessoas que, querendo ser consideradas «bons crentes», punham de parte deliberadamente algumas das implicações da obediência aos mandamentos do Senhor.

 

A nível teológico senti-me triste e irado perante a tentativa de alguns – mesmo eruditos evangélicos – de defender que podemos aceitar Jesus como Salvador (assim tendo assegurada a nossa salvação eterna), sem arrependimento e antes de, ou mesmo sem O aceitar como Senhor das nossas vidas. Zango-me face à perversidade destas ideias, e talvez tenha havido situações em que me devesse ter zangado mais!

 

Tenho a consciência de que, sendo de temperamento normalmente introvertido, uma situação que me causa ira provoca por vezes reações muito fortes que pessoas à minha volta estranham. Aqui a tensão arterial lábil e o descontrolo do nível de açucar no sangue tendem a contribuir para as reações. Não as justificam: em alguns casos - mas não em todos - há outros fatores que as podem justificar mais.

 

Como Paulo reconhece espaço para a ira, mas sem pecar, não deixando que a abriguemos até ao dia seguinte (Efésios 4:26), costumo fazer questão de tentar resolver as situações em conversas frontais, evitando cair em ressentimentos. Em todos os casos, na igreja, em que algumas pessoas contestavam o nosso trabalho, adotei como regra nunca deixar de falar com nenhuma delas. por vezes, ao ver uma dessas pessoas na rua, tinha que atravessar a propósito para a cumprimentar.

 

 

O zelo que nunca é justo (mas julga que é):

 

Fora da igreja de Cristo há pessoas «zelosas» que julgam que as medidas que tomam contra os cristãos são justas. No Novo Testamento Saulo de Tarso é o melhor representante desta classe e, após a sua conversão, já com o nome de Paulo, descreve com discernimento e tristeza o seu “zelo” anterior mal orientado («Segundo o zelo, perseguidor da igreja, segundo a justiça que há na lei, irrepreensível», Filipenses 3:6).

 

Estranhamente aparecem também pessoas dentro das igrejas com as mesmas caraterísticas. É o caso de «Diótrefes», membro tão “zeloso” da igreja à qual o apóstolo João escreve a sua terceira carta. Ele gosta de ter o primeiro lugar e julga que é justo recusar a visita do próprio apóstolo ou de qualquer representante dele (3 João 9-10)!

 

Pastores, líderes de organizações evangélicas ou «diáconos» na igreja local – com a sua fome de «poder» - por vezes transformam-se nos piores inimigos de outros que querem servir o Senhor com humildade e convicção.

 

Como tratar de qualquer caso específico que encontramos ao longo destes anos poderia ser melindroso, termino este retalho, o último da série, com um exemplo de uma personagem de um filme. É uma líder religiosa e encarna o espírito de zelo farisaico com todas as suas expressões típicas. Para alguns leitores o filme sem dúvida será conhecido.

 

O filme é «Doubt» («Dúvida»), 2008, do realizador, Scott Rudin, baseado na obra de John Patrick Shanley. Meryl Streep representa o papel de uma freira autoritária, Aloysius Beauvier, que é diretora de um colégio católico nos anos ’60. Aloysius julga que é só com ‘mão de ferro´ que consegue manter a ordem na escola, segundo as boas velhas tradições. Um padre que é muito popular, hierarquicamente superior a ela, Father Flynn, começa, no entanto a evidenciar do púlpito alguma dúvida a nível das suas convicções. Ao mesmo tempo, esforça-se por proteger e ajudar um aluno negro que não tem´uma boa figura de pai na sua vida e sofre dessa situação familiar difícil. Aloysius descobre que o padre chamou o aluno no seu escritório e ‘sente-se na obrigação’ de o denunciar por pedofilia e forçar a sua saída do sacerdócio, orquestrando uma campanha maciça de difamação.

 

Uma freira jovem, que forneceu alguns elementos que Aloysius usou para o seu ataque contra o Padre Flynn, depois percebeu que não existia nenhuma evidência concreta para a acusação de pedofilia. Mas Aloysius afirma que obteve evidências de má conduta do Padre Flynn numa paroquia anterior – e depois tem de confessar que mentiu: nem sequer fez o contacto. As confrontações entre Aloysius e Flynn são duríssimas (e muito bem representadas pelos atores no filme) – os efeitos sobre a escola terríveis.

 

O que chama a atenção é a «certeza inabalável» que Aloysius sente naquilo de que acusa Flynn, sem precisar de evidências. É o que em outros contextos se chama «a voz de Deus», que os iluminados seguem fanaticamente, sem precisar de evidências tangíveis e recusando-se a considerá-las mesmo quando elas surgem.

 

E no fim do filme vêm algumas admissões: Aloysius admite que também cometeu «pecado mortal» no passado (sem revelar o que foi) e é obrigada a assumir, no fim de tudo, que existe um elemento subjacente de dúvida, dentro dela própria, que a impele a usar outros para tentar reforçar a sua «certeza». O seu autoritarismo é destrutivo para ela e ao mesmo tempo apoia-se numa mentira subjacente em que ela vive - ao recusar-se a admitir as suas próprias dúvidas.

 

Paulo descreve este tipo de zelo no seu próprio passado, que o fazia «recalcitrar contra os aguilhões (Atos 26:14). Tanto um religioso fanático descrente como um crente em desobediência - quando este confunde os seus próprios impulsos com a «voz do Senhor» - pode cometer atrocidades, aparentemente com a consciência tranquila.

 

Ao pedir que Deus me dê zelo pela causa de Jesus, suplico-lhe do fundo do meu coração que nunca seja invadido pelo zelo da religiosa Aloysius, de Saulo de Tarso ou de Diótrefes.

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