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Nunca chegámos a conhecer pessoalmente Francis e Edith Schaeffer, fundadores dos centros «L’Abri».  Mas o legado deste casal americano, a sua abordagem à cultura contemporânea e o seu ministério de hospitalidade marcaram-nos profundamente.

 

Em 1969, quando fui estudar Literatura Inglesa em Magdalene College, Cambridge, os livros «Escape from Reason» e «The God who is There» eram novidades para os estudantes cristãos. Era impressionante para mim a amplitude do conhecimento literário, filosófico, histórico e artístico de Francis Schaeffer e também a sua capacidade de sistematização. Mais significativo ainda era saber que este autor pertencia à tradição mais conservadora do mundo evangélico, tendo-se insurgido na sua juventude contra o liberalismo da sua Igreja (a presbiteriana) nos EUA e, por influência do teólogo J. Gresham Machen, havia integrado a «Bible Presbyterian Church» que se separou da denominação principal.

 

Schaeffer argumentava que toda a cultura moderna estava baseada numa visão mecanicista do universo em que a personalidade humana era vista como um fenómeno surgido por acaso. Considerava que todo o misticismo religioso, as religiões orientais, o liberalismo teológico dos séculos XIX e XX e a teologia neo-ortodoxa de Karl Barth colocavam «Deus» num «andar superior», impossível de conhecer pela via da razão. Defendia energicamente que só quem acredita na Bíblia integralmente como Palavra de Deus, quem acredita que o Génesis relata acontecimentos reais, sucedidos no espaço e no tempo, e quem acredita na ressurreição corporal de Jesus é que captou realmente a natureza da fé cristã genuína no Deus soberano, Criador de todas as coisas. É que só assim é que se tem a possibilidade de viver uma vida com significado e propósito, de amar, de ter noções de ética e racionalidade, de beleza e de comunicação verbal. 

 

Na medida em que alguns destes livros foram sendo traduzidos para o francês, o espanhol e, mais tarde, para o português, a Celeste - na sua fase de estudante empenhada no trabalho do GBU - foi conhecendo e sendo influenciada pelos mesmos. Isso vários anos antes do seu primeiro encontro comigo!

 

Igualmente marcante para nós foi outra dimensão do ministério do casal Schaeffer: a sua extraordinária capacidade de usar o seu lar para receber jovens, criando um espaço para o convívio, a reflexão e, muitas vezes, uma oportunidade de serem confrontados com o Cristo histórico e sempre actual. «L’Abri» era o seu centro na Suíça, criado nos anos 50, em que  Francis era o interlocutor e  Edith a anfitriã, aplicando na cozinha e no refeitório as suas extraordinárias capacidades práticas e artísticas. Muitos dos jovens ocidentais tinham viajado para o Oriente à procura de uma experiência mística de Deus; muitos também tinham problemas sérios com álcool e drogas. O custo para o casal, em termos materiais e de estabilidade pessoal e familiar foi enorme, chegando eles algumas vezes a um ponto de saturação, e mesmo de tensão no seu relacionamento, que não puderam esconder dos seus quatro filhos. Mas pela graça de Deus, aprenderam a cultivar cada vez mais a compaixão e o sentido de solidariedade com aqueles que não criam ou que eram fracos na fé. Deixaram atrás uma certa frieza dogmática, típica dos meios «fundamentalistas» que conheciam, sem abandonar o rigor das suas convicções teológicas. Enquanto Schaeffer argumentava, e enquanto orava pelas pessoas, estava convicto da condenação eterna que aguardava aqueles que morriam sem conhecer Cristo e era comum, por esse motivo, as pessoas verem os seus olhos cheios de lágrimas. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, o casal era alegre, tendo uma grande capacidade de desfrutar as belezas da criação de Deus, nos Alpes e em muitos outros lugares, e a beleza e riqueza da criatividade humana.

 

Anos antes da publicação em 1979 de Jean-François Lyotard de «La Condition Postmoderne», que introduziu o termo «pós-moderno» no léxico filosófico, Francis Schaeffer já o usara no seu livro «Escape from Reason» (1968). Nele comenta, com a sua habitual perspicácia e compaixão, a obra e o percurso trágico de Michel Foucault que depois veio a ser considerado um protótipo do «pós-modernismo» - modo de pensar pluralista e essencialmente irracional, que marcou a geração seguinte. Foi em Maio de 1984 que Francis Schaeffer veio a falecer, vítima de um cancro prolongado.

 

Como muitos outros obreiros do GBU e de movimentos equivalentes, tentámos usar a nossa pequena casa alugada em Coimbra como um tipo de «L’Abri». Depois tentámos fazer o mesmo nas instalações da sede do movimento, perto da Estefânia em Lisboa e, depois ainda, na mesma casa em Coimbra, para a qual voltámos, já com três filhos e um outro quase a nascer, em 1985. Quando mudámos para Caldas da Rainha, em 1991, para eu assumir o ministério pastoral da igreja, queríamos também exercer a hospitalidade (apesar do facto de aparentemente não ser muito comum os pastores das nossas igrejas poderem usar a sua casa como lugar para convidar e aconselhar pessoas).

 

Do que parece o casal Schaeffer, que tinha sido um dos grandes exemplos para nós, não foi mencionado muitas vezes explicitamente em conversa com os nossos filhos. Nem mesmo quando em meados dos anos 1990, visitámos pela primeira vez um Centro influenciado por «L’Abri»: «Cascadas», em Alameda del Valle, Sierra de Guadarrama, Espanha. Fomos convidados numa altura em que o nosso ministério pastoral estava a ser alvo de contestação e ataques e estávamos muito cansados. As nossas anfitriãs, Jill Spink e Lesley Smith, tinham absorvido de «L’Abri» (que conheciam de maneira especial no seu Centro em Greatham, no sul da Inglaterra) a capacidade de abrir o seu lar, de ouvir e conversar e de “chorar com aqueles que choravam”.

 

Foi curioso, então, que só aos 18 anos, ao ir estudar Filosofia na Universidade de Coimbra, é que o John, o nosso segundo filho, conheceu o nome de Francis Schaeffer. Voltou a casa nas Caldas, depois de ter estado em reuniões do GBU, e disse, com entusiasmo notável, que tinha conhecido a obra de um filósofo cristão extremamente interessante e perguntou se conhecíamos a sua obra! Assim o John ganhou dos livros de Schaeffer algumas ferramentas para considerar o desafio de Foucault e Derrida: é verdade que alguns dos seus professores ainda eram mais «modernos» do que «pós-modernos», mas a nova corrente estava a chegar com alguma força.

 

Um dos estudantes dos anos 80 que almoçou alguns domingos connosco na nossa casinha em Coimbra foi o Joaquim (Quim) Rogério. Ele fazia questão de me convidar algumas vezes a ir à sua Faculdade, a de Direito, para conversas apologéticas e evangelísticas com os seus colegas. Nos anos 90 também começou a envolver-se com o Centro Cascadas em Espanha. Entre ele, a sua esposa Lena e a Jill e a Lesley, surgiu a ideia de haver um centro de tipo «L’Abri» em Portugal também. Nenhum dos dois centros tinha ou teria uma ligação formal com os Centros L’Abri que existem em outros países, mas ambos representariam uma tentativa de viver essa visão do cristianismo, aplicado à totalidade da vida, nos respectivos países ibéricos. Durante anos o nosso bom amigo e conselheiro cristão, Richard Goodwin, da escola do conhecido Larry Crabb, foi o conferencista convidado em Cascadas, Espanha, e depois veio a ser também em Cascatas, Portugal.

 

Pouco tempo antes da inauguração das novas instalações da nossa Igreja nas Caldas da Rainha, foi organizada também, num Notariado em Lisboa, a Associação Evangélica Cascatas, cujo objectivo era comprar e organizar o Centro em Portugal, sob a liderança do casal Alan e Celeste Pallister. Graças ao envolvimento da Joan, mãe de Jill Spink, foi possível a aquisição de uma casa, a 8 kms. de Caldas da Rainha, tendo a metade do valor sido oferecida por uma Fundação com sede em Inglaterra e a outra metade emprestada sem juros. Depois, o segundo andar da vivenda e uma parte do r/c foram adaptados para podermos receber grupos e famílias. Sem eu ter de deixar o ministério pastoral da igreja nem o ensino da teologia no Seminário Baptista, foi possível, com a ajuda voluntária de muitos, pôr em prática, pelo menos parcialmente, a visão que l’Abri nos tinha legado. Foi nessa altura que visitámos L’Abri em Inglaterra. O seu director, Andrew Fellows, não só nos encorajou muito, mas teve a oportunidade de ser o prelector convidado na inauguração do Centro, que depois veio a receber o nome de «O Canto da Rola». Eu e o John fomos passar uma semana em L’Abri, Inglaterra, e depois a nossa filha, Lilian e a nossa amiga Carla (então Martins), passaram lá um tempo também. A Carla trabalhou no «Canto da Rola» durante algum tempo e, posteriormente, veio a casar com o Anthony Oughton, que tinha conhecido na sua estada em L’Abri, Inglaterra.

 

Também no ensino teológico o legado de Schaeffer continuou a ser marcante para mim. Aprendi dele, e de John Stott também, a ser conservador na doutrina das Escrituras e ao mesmo tempo dialogante e aberto para a cultura dos nossos tempos. Aprendi a ideia da «co-beligerância» - a luta, lado a lado, com pessoas que têm outras bases religiosas ou filosóficas, mas com quem partilhamos certas preocupações humanas, sociais ou políticas. Aprendi dele a distinguir entre questões fundamentais de doutrina e ética e questões secundárias. No seu livro «No Final Conflict», por exemplo, Schaeffer enumera e compara diferentes abordagens evangélicas dos primeiros capítulos do Génesis, nenhuma das quais nega a sua historicidade, e combate a tendência simplista de muitos evangélicos de rotularem como “liberais” aqueles que não perfilham exactamente a sua interpretação preferida.

 

A história do legado do casal Schaeffer - e de L’Abri - na nossa vida e ministério não terminou. Mas um capítulo dessa história terminou de uma forma para nós marcante. Na Páscoa do ano 2013, estava a dar alguns estudos bíblicos no Centro Cascadas (Espanha). Tinha-me inspirado num dos livros do casal Schaeffer que considero dos melhores (e com um tema pouco comum): «Christianity is Jewish» de Edith Schaeffer. A compreensão da autora das raízes profundamente judaicas do Evangelho de Cristo sensibilizou-nos e inspirou-nos para traduzir na prática os ensinos de ambos os Testamentos, de uma forma mais genuína. Mencionei, no princípio das minhas reflexões, que a autora do livro ainda era viva, estando a desfrutar de uma longevidade impressionante (tinha atingido os 98 anos!). Ao regressarmos a Portugal, no fim desses dias, soubemos que Edith Schaeffer tinha falecido tranquilamente na Suíça, nesse período em que, em Espanha, estávamos a estudar o seu livro - coincidência esta que depois comunicámos à sua família e colaboradores.

 

Mais uma vez sentimos, de uma forma bem vincada, a verdade do Salmo 116:15 que diz: «Preciosa é, à vista do Senhor, a morte dos seus santos».

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