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Os Defeitos de Jonas

ou

O Poder de um Ídolo

 

A história de Jonas é universalmente conhecida no mundo judaico-cristão. A este facto não será alheia a imagem vívida, gravada nas mentes de adultos e crianças, de um homem que, durante três dias e três noites, sobreviveu de forma miraculosa nas entranhas de um grande ser dos mares.

 

Tal como a experiência invulgar por que passou, Jonas era um servo de Deus incomum. De facto, as Escrituras por norma apresentam-nos como servos do Altíssimo pessoas que, apesar das suas imperfeições, praticam actos de fé que nos podem, em muitos sentidos, servir de exemplo (cf. nomeadamente o capítulo 11 da carta aos Hebreus, designado por muitos a "galeria da fé"). Jonas era diferente: no relato do livro com o seu nome, os defeitos do profeta sobressaem de forma clara relativamente às suas virtudes.

 

 

Desobediência

Logo nas primeiras linhas do livro de Jonas, Deus incumbe o profeta de uma missão: "E veio a palavra do Senhor a Jonas (...), dizendo: Levanta-te, vai à grande cidade de Nínive e clama contra ela, porque a sua malícia subiu até mim.” (Jonas 1:1-2)

 

As instruções de Deus não podiam ser mais claras. Porém, a reacção de Jonas também não podia ter sido de maior desobediência: Nínive situava-se a oriente da Palestina, mas o profeta dirigiu-se para ocidente, em direcção à cidade costeira de Jope, para ali embarcar para Társis, na Península Ibérica, portanto no extremo ocidental do Mar Mediterrâneo...

 

A Palavra de Deus não nos deixa na dúvida, em relação ao que pretendia Jonas: duas vezes no verso 3 do capítulo 1 lemos que o profeta procurava "fugir de diante da face do Senhor". E quando isto acontece, quando um crente se afasta deliberadamente da comunhão com Deus, as consequências para a sua vida só podem ser negativas. Esta realidade espiritual tem o seu paralelo no percurso de Jonas, marcado pelo uso do verbo “descer”, ao longo dos capítulos 1 e 2 do livro com o seu nome: o profeta desce, primeiro, para Jope e, depois, para dentro de um navio.

 

 

Indiferença

 

A descida de Jonas acentuou-se quando, perante a violenta tempestade enviada por Deus, "desceu aos lugares do porão, e se deitou, e dormia um profundo sono." (Jonas 1:5)

 

Deus ama os Seus filhos, por isso, quando estes entram no caminho descendente da desobediência e se entregam à sonolência espiritual, Ele não pode ficar indiferente à sua indiferença: "o Senhor corrige o que ama e açoita a qualquer que recebe por filho." (Hebreus 12:6)

 

A tempestade da correcção, a que Jonas reage com indiferença, despertou, todavia, o temor dos marinheiros, os quais fazem tudo o que está ao seu alcance para se conseguirem salvar, desde clamarem aos seus deuses, até lançarem a carga do navio borda fora, para o aliviarem do seu peso. Por isso, quando o mestre da embarcação encontra o profeta dormindo profundamente no porão, reage com perplexidade, interpelando-o com palavras que ecoam através dos séculos, envergonhando todos os crentes indiferentes ao destino dos perdidos:

 

"Que tens, dormente? Levanta-te, invoca o teu Deus; talvez assim Deus se lembre de nós para que não pereçamos." (Jonas 1:6)

 

A perplexidade acaba por dar lugar a um grande temor, quando os marinheiros se inteiram das circunstâncias que levaram Jonas a embarcar no navio, e, após tentarem por todos os meios salvar-se sem o conseguirem, acabam por aceder à vontade do profeta (que se assume como causador da tempestade), lançando-o ao mar.

 

À partida seria este o fim dramático de um crente desobediente à vontade de Deus e indiferente à Sua correcção. Não fora a misericórdia do Senhor, terminaria desta forma inglória a passagem de Jonas por este mundo. Porém, Deus não desiste facilmente dos Seus filhos, mesmo dos mais incorrigíveis e obstinados: no lugar da morte física, encarada como inevitável, o profeta continua o seu percurso descendente, sendo engolido por um grande ser marinho, preparado pelo Senhor como nova etapa no seu processo de correcção e reabilitação.

 

Indiferente perante a violenta tempestade e a eminência da morte por afogamento, Jonas tem de descer ainda mais fundo: "tu me lançaste no profundo, no coração dos mares, e a corrente me cercou; todas as tuas ondas e as tuas vagas têm passado por cima de mim.” (Jonas 2:3)

 

Estas palavras são pronunciadas na oração que o profeta faz nas entranhas do grande ser dos mares, e é só perante esta experiência extrema que ele finalmente se vira para Deus: "Na minha angústia, clamei ao Senhor, e ele me respondeu; do ventre do inferno gritei, e tu ouviste a minha voz." (Jonas 2:2)

 

Restaurado o seu relacionamento com Deus, Jonas é vomitado na praia, e o Senhor pode repetir-lhe a ordem dada inicialmente, no sentido de se dirigir a Nínive e pregar aos seus habitantes.

 

Ressentimento

 

Desta vez, Jonas cumpre à risca as instruções do Senhor, e os resultados foram instantâneos e radicais: os habitantes de Nínive creram na sua pregação (segundo a qual, devido ao seu pecado, a cidade seria destruída no prazo de quarenta dias), proclamaram um jejum colectivo e vestiram-se de panos de saco, numa demonstração de profundo arrependimento. Aquele que conhece todos os corações compadece-se deles e, na Sua misericórdia, acaba por desistir dos Seus intentos.

 

Perante o sucedido, a reacção de Jonas, de alguém que, recorde-se, pouco tempo antes havia sido, ele próprio, salvo da destruição pela misericórdia de Deus, só nos pode deixar surpreendidos:

 

"Mas desgostou-se Jonas extremamente disso e ficou todo ressentido. E orou ao Senhor e disse: Ah! Senhor! Não foi isso o que eu disse, estando ainda na minha terra? Por isso, me preveni, fugindo para Társis, pois sabia que és Deus piedoso e misericordioso, longânimo e grande em benignidade e que te arrependes do mal." (Jonas 4:1-2)

 

Mais de cento e vinte mil pessoas são salvas da aniquilação total através da sua pregação, e Jonas fica "todo ressentido"... Pior ainda: confessa que o que o levou a tentar fugir para Társis foi o receio de que o Senhor se viesse a apiedar daquela gente. O seu desgosto agora é tão grande que pede a Deus que lhe tire a vida...

 

Falta de compaixão

 

Jonas acaba por sair de Nínive e instalar-se nos seus arredores, aparentemente ainda acalentando a esperança de vir a assistir à destruição da cidade (cf. Jonas 4:5). Nessa altura, o Senhor faz com que nasça uma aboboreira que, com a sua sombra, o alivia do calor intenso, o que lhe agrada bastante. Porém, quando Deus, no dia seguinte, envia um bicho que destrói a planta e um vento oriental que, com o calor do sol, o faz perder os sentidos, o profeta mais uma vez deseja a morte.

 

Neste momento, o Senhor tem de o repreender severamente:

 

"Tiveste compaixão da aboboreira, na qual não trabalhaste, nem a fizeste crescer; que, em uma noite, nasceu e, em uma noite, pereceu; e não hei-de eu ter compaixão da grande cidade de Nínive, em que estão mais de cento e vinte mil homens, que não sabem discernir entre a sua mão direita e a sua mão esquerda (...)?" (Jonas 4:10-11)

 

É desta forma que Deus aponta a Jonas a falta de compaixão como um dos seus maiores defeitos.

 

 

O poder de um ídolo

 

Desobediência, indiferença, ressentimento e falta de compaixão são defeitos graves que não esperaríamos encontrar num profeta do Altíssimo. Todavia, apesar de graves, eles, no fundo, são apenas os sintomas de um pecado ainda mais grave, que está na sua origem: a idolatria. Este pecado é proibido logo no primeiro dos Dez Mandamentos (cf. Êxodo 20:2-6) e, juntamente com o ligado ao segundo (o de tomar o nome do Senhor em vão – cf. Êxodo 20:7), é praticado directamente contra o próprio Deus.

 

Apesar de o ídolo de Jonas não ser nomeado uma única vez no livro com o seu nome, ele está claramente implícito no seu “negativo”, isto é, no ódio que o profeta nutre pelo povo de Nínive.

 

De facto, se quisermos saber qual é o ídolo de alguém, por norma conseguimos fazê-lo ao observarmos aquilo que desperta nessa pessoa as reacções mais acesas e violentas: quem adora um ídolo não tolera que este seja tocado.

 

Qual era o ídolo de Jonas? Os ninivitas, além de grandes pecadores, eram os habitantes da capital da Assíria, um poderoso, temido e recorrente inimigo da nação de Israel. E Jonas amava o seu país e o seu povo. Amava-os de tal forma que, sabendo o quanto Deus é piedoso e misericordioso, previu que, apesar de ser enviado com uma mensagem de destruição, o Senhor iria perdoar àqueles que ele queria ver apagados da face da terra, tendo por isso, primeiro, fugido e, depois, cumprido a Sua vontade mas contrariado.

 

Tal é o poder de um ídolo: um profeta do Altíssimo pôde chegar ao ponto de virar as costas ao seu Deus, ignorar a Sua disciplina, desejar a morte, reagir com ressentimento e falta de compaixão à salvação de milhares de pessoas, porque na sua vida tinha erigido um ídolo que se elevava acima do próprio Criador.

 

É fácil para nós olharmos para Jonas com desdém. Porém, se analisarmos as nossas vidas de forma honesta, será que podemos afirmar com toda a segurança que não somos culpados de idolatria? Talvez o nosso ídolo não seja o nosso próprio país ou o nosso próprio povo, mas ele pode ser os nossos entes-queridos, a nossa carreira profissional, as nossas posses materiais, os nossos passatempos favoritos… Em suma, tudo o que nos leva a colocar Aquele que deve ser o Senhor da nossa vida em segundo plano e que, por consequência, esfria o nosso amor por Ele e pelo próximo, levando-nos a atitudes e a actos de incoerência, muitas vezes gritante, em relação à fé que professamos.

 

Aquilo que Deus requer de nós, não só porque é zeloso da honra que Lhe é devida, mas também porque sabe que apenas assim se cumprirá a plenitude e o equilíbrio que Ele sempre teve em mente para as nossas vidas, é o que Jesus afirmou quando um fariseu Lhe perguntou qual era o grande mandamento das Escrituras:

 

“Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” (Mateus 22:37-39)

 

Numa vida cheia do amor a Deus, não há lugar para a idolatria nem para a inimizade em relação aos homens.

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