Nas últimas décadas, nas sociedades ocidentais, a problemática da eutanásia e suicídio assistido é um dos assuntos mais debatidos no campo da bioética e ética médica mas não tanto pela sociedade civil. É um assunto recorrente nos meios de comunicação e, de uma maneira geral, os jornalistas têm uma opinião favorável à sua legalização, utilizando muitas vezes os termos “morte assistida” ou “morte digna” para enfatizarem as suas convicções.
Talvez as questões relacionadas com o início e o final da vida humana sejam das mais permeáveis a influências ideológicas e político-partidárias, pelo que se torna premente uma reflexão o mais isenta e esclarecida possível sobre este assunto delicado e complexo, que está agora na ordem do dia em Portugal.
O que é a eutanásia e o suicídio assistido
A palavra eutanásia resulta da associação de dois vocábulos gregos - “eu” (bem, com bondade) e “thanatos” (morte), podendo ser traduzida por “boa morte”, “morte suave” ou “morte sem sofrimento”. No seu sentido original, representava uma morte natural, tranquila, não envolvendo a intervenção de outra pessoa. Ora este é o tipo de morte que todos queremos, para nós e para os nossos familiares e amigos, naturalmente o mais tarde possível. Pensa-se que a primeira utilização da palavra eutanásia com este significado se encontra em Suetónio, cronista romano, que escreve acerca da morte do imperador César Augusto no século I da era cristã: “A sua morte foi doce e tal como ele sempre a desejara, porque quando ouvia dizer que alguém morrera prontamente e sem dor, desejava para ele e para os seus um fim semelhante, servindo-se da expressão grega euthanatos”.
Porém, a partir do final do século XIX, o significado da palavra eutanásia mudou radicalmente. Poderá definir-se, na atualidade, como sendo a morte de uma pessoa portadora de uma doença ou incapacidade que lhe causa sofrimento intolerável, a seu pedido, por um médico que aceita provocar-lhe intencionalmente uma morte antecipada.
Há quem classifique a “eutanásia” como não voluntária quando é realizada sem o conhecimento da vontade do doente ou quando ele não possui capacidade de decisão (por alterações da consciência, coma, demência, menoridade) e “eutanásia” involuntária, que consiste na morte provocada contra a vontade do doente, por decisão de outras pessoas. Contudo, estas duas situações de morte intencional não passam de atos de homicídio, mesmo que sejam realizadas por profissionais de saúde. Só a eutanásia voluntária, ou seja, realizada a pedido de um doente consciente e com as suas capacidades mentais conservadas, não é considerada homicídio nos três pequenos países onde esta prática é legal (Holanda, Bélgica e Luxemburgo).
O suicídio medicamente assistido consiste também numa morte antecipada, mas distingue-se da eutanásia na medida em que o médico não intervém diretamente na morte do doente. A sua função consiste em providenciar os meios necessários para que a morte ocorra, nomeadamente através da prescrição de medicamentos letais que o doente poderá ingerir para pôr termo à vida.
O que não é eutanásia
Importa agora esclarecer o que a eutanásia não é, pois uma das razões que levam muitas pessoas a manifestarem uma opinião favorável à legalização da eutanásia ou suicídio assistido é, a meu ver, por desconhecerem o verdadeiro significado do termo e suas implicações.
A eutanásia não é a suspensão ou abstenção de tratamentos inúteis ou desproporcionados para o estado clínico do doente. Não iniciar ou suspender tratamentos ineficazes ou de benefício duvidoso para o doente, evitando a chamada obstinação terapêutica, não só não é eutanásia como pode ser considerado boa prática médica.
Também não é eutanásia a administração de medicamentos com uma finalidade terapêutica, como por exemplo a morfina, ainda que possam ocasionalmente encurtar a vida do doente. A utilização de medicamentos para tratar a dor intensa, bem como usar sedativos para aliviar sintomas não controlados de outra forma, pode também ser considerado boa prática clínica. O que não é lícito é deixar o doente sofrer se houver recursos disponíveis para aliviar o sofrimento.
Por último, não é eutanásia o direito que um doente consciente e lúcido tem de recusar qualquer tratamento médico, mesmo que seja considerado necessário para evitar a sua morte (p. ex. uma cirurgia para remoção de um tumor maligno). Exceto em algumas situações de urgência, respeitar a vontade do doente que, de uma forma esclarecida, pede à equipa de saúde para suspender tratamentos ou que lhe sejam retirados meios artificiais de suporte vital, é também eticamente legítimo e tem suporte jurídico. Desde Agosto de 2012 está em vigor em Portugal uma lei que regula as chamadas declarações antecipadas de vontade em matéria de cuidados de saúde, que podem assumir a forma de Testamento Vital ou a nomeação de um procurador de cuidados de saúde. O Testamento Vital é um documento escrito por um adulto psiquicamente competente, no qual manifesta a sua vontade livre e esclarecida sobre os cuidados de saúde que deseja ou não receber caso se encontre incapaz mais tarde de expressar a sua vontade de forma autónoma.
Outra situação que tem gerado vários equívocos no debate sobre a eutanásia é a utilização de expressões como “morte assistida” ou “morte digna” pelos promotores da sua legalização. A maioria das pessoas prefere certamente ter uma “morte assistida” ou uma “morte digna” do que morrer sozinha, longe do seu lar e em sofrimento, sem que isso signifique que desejam ser mortas de uma forma direta e ativa pela intervenção de terceiros.
Sinopse histórica
Fazendo agora uma breve referência histórica, gostaria de sublinhar que o aborto, o infanticídio, o suicídio por razões médicas e a eutanásia eram comuns e socialmente aceites no mundo antigo greco-romano. O suicídio assistido, quando não havia esperança de cura, era executado através da secção dos vasos sanguíneos ou da administração de produtos tóxicos e venenos.
No século IV a.C. é redigido na cidade grega de Cós o primeiro código de ética médica designado Juramento Hipocrático, que constitui um marco histórico, na medida em que declara solenemente que aos médicos está interdito provocarem intencionalmente a morte de um doente. Praticamente todos os códigos de ética médica, desde essa altura e até aos nossos dias condenam totalmente a prática da eutanásia, como sendo contrária à missão e propósito da medicina, que consiste em procurar restaurar a saúde de um doente.
Em algumas culturas, havia o costume pagão de acelerar a morte de pessoas com doenças graves supostamente incuráveis, por meio do estrangulamento ou da sufocação. Miguel Torga, no seu livro Novos Contos da Montanha, apresenta a personagem Alma Grande, também chamado de pai da morte ou abafador, que existia em algumas aldeias rurais de Portugal: “Entrava, atravessava impávido e silencioso a multidão que há três dias, na sala, esperava impaciente o último alento do agonizante, metia-se pelo quarto dentro, fechava a porta, e pouco depois saía com uma paz no rosto pelo menos igual à que tinha deixado ao morto.” Contudo, como este conto retrata de forma magistral, nem sempre as doenças eram fatais. Lemos mais à frente nesta narrativa: “o Alma Grande olhara pela primeira vez a escuridão do seu poço”. Matar, mesmo por motivos altruístas, não dignifica ninguém.
Argumentos a favor
Os principais motivos para um pedido de eutanásia ou suicídio assistido incluem a presença de dor e outros sintomas físicos (p. ex. vómitos, convulsões, agitação psicomotora, etc.) considerados insuportáveis pelo próprio; a ansiedade e problemas psicológicos ou psiquiátricos; o receio ou situação de perda de autonomia e dependência; o desejo de não ser uma sobrecarga ou fardo para a família; ou o sentimento pessoal de que o projeto de vida está esgotado. Ao contrário dos sintomas físicos, que surgem sobretudo nos doentes terminais e oncológicos, este motivo é referido por pessoas com doenças crónicas degenerativas do sistema nervoso central (p. ex. esclerose múltipla) ou tetraplegia, que apesar das suas limitações físicas não são doentes terminais, mas representam os casos mais mediáticos de pedidos de ajuda para morrer.
Os dois principais argumentos invocados a favor da legalização e prática da eutanásia são o alívio da dor ou sofrimento e o respeito pela autonomia individual da pessoa, que nos últimos anos passou a ser o argumento central. Há um terceiro, em que se alegam motivos de natureza económica, que apesar de minoritário tem vindo a assumir maior expressão, sobretudo num contexto de crise económica e de contenção de custos com a saúde.
Os defensores da eutanásia ou do suicídio medicamente assistido defendem o direito de controlarem o momento, o lugar e as circunstâncias da sua morte. O filósofo alemão Nietzsche, responsável pela transmutação dos valores que ocorreu na modernidade, afirmava: “Deve-se morrer orgulhosamente quando já não é possível viver com orgulho.” Vários estudos realizados na Holanda e nos EUA (sobretudo no estado de Oregon, onde o suicídio assistido é permitido desde 1997), revelam que uma das principais razões porque algumas pessoas querem morrer é porque as suas vidas deixaram de ter sentido e tornaram-se dependentes de terceiros, o que consideram inaceitável, e não por apresentarem dor ou outros sintomas considerados insuportáveis.
O Dr. Philip Nitschke, responsável pela eutanásia de quatro pessoas nos Territórios do Norte, na Austrália em 1996 e 1997 (antes da lei que permitia a eutanásia ser revogada), ao ser interrogado se não haveria uma característica comum nessas pessoas respondeu afirmativamente: “Aquela que sobressai é o facto de serem pessoas que sempre estiveram no controlo das suas vidas. Eram pessoas que não aceitavam facilmente que outros tomassem decisões por elas e que gostavam de dirigir as suas vidas (…) Algumas tinham dor mas a dor não era o sintoma principal”. Na verdade, vários estudos têm demonstrado que a grande maioria dos pedidos de eutanásia resultam de problemas de natureza existencial ou espiritual e não do foro médico.
Argumentos contra
Um dos argumentos mais antigos traduz-se em muitas pessoas considerarem que a vida humana é sagrada e inviolável, mesmo que não acreditem em Deus ou na transcendência. Nesta perspetiva, é sempre errado matar vidas inocentes porque a vida é digna de ser vivida e estar vivo é um bem, independentemente das circunstâncias.
Alguns promotores da legalização da eutanásia e suicídio assistido defendem que é melhor haver uma lei que autorize estas práticas em determinadas circunstâncias do que um vazio legal. Trata-se de um argumento falacioso. As leis não evitam os abusos e o que acaba por acontecer é que se verifica uma flexibilidade dos critérios enunciados na lei, com a complacência das autoridades. Nos três países europeus onde a eutanásia voluntária é legal, tem-se verificado uma progressão inevitável para a “eutanásia” não-voluntária e involuntária, que não são mais do que modalidades de homicídio. Não surpreende assim que o Supremo Tribunal de Justiça dos EUA e Reino Unido tenham, em diferentes ocasiões, rejeitado a legalização da eutanásia ou suicídio assistido com base na incapacidade do Estado holandês controlar eficazmente esses atos, de acordo com os critérios definidos na lei.
A prática da eutanásia ou suicídio assistido são incompatíveis com a missão primordial da medicina e enfermagem, que consiste em combater a doença, conservar a vida e aliviar o sofrimento, o que está em consonância com o Juramento Hipocrático e outros códigos de ética e deontologia. Como refere o Prof. Daniel Serrão, “a aceitação da eutanásia pela sociedade levaria à quebra de confiança que o doente tem no médico. Uma sociedade que despenaliza a eutanásia corre o risco de provocar uma enorme insegurança dos cidadãos face à atividade das equipas de saúde.” É precisamente isto que se está a verificar nos países onde a eutanásia é legal, em que muitos idosos têm medo de recorrer aos serviços de saúde por poderem vir a ser mortos sem o seu consentimento.
A Drª Cicely Saunders, cristã convicta, foi a pioneira da Medicina Paliativa, reconhecida como especialidade no Reino Unido desde 1987. Fundou, em 1967, a primeira unidade de cuidados paliativos da era moderna – o St. Christopher’s Hospice em Londres. Os Cuidados Paliativos têm por objetivo proporcionar aos doentes terminais uma morte digna, medicamente assistida mas não provocada. Valorizam a vida mas encaram a morte como um processo normal. Não antecipam nem atrasam a morte intencionalmente. Proporcionam aos doentes o alívio da dor e de outros sintomas incómodos. Não são dispendiosos, ao contrário da medicina curativa. Podem e devem ser prestados no domicílio, tanto quanto possível. Integram os aspetos psicológicos, sociais e espirituais dos cuidados, de forma que os doentes possam assumir a sua própria morte de uma forma mais tranquila. Além disso, oferecem um sistema de apoio para auxiliar as famílias a adaptarem-se durante a doença do doente e durante o luto.
Tive a oportunidade de visitar várias unidades de cuidados paliativos, em Portugal e no Reino Unido, e pude observar por mim próprio que é possível proporcionar excelentes cuidados de saúde em doentes terminais, não com fins curativos mas tendo em vista a melhor qualidade de vida possível, apesar da doença. A melhor resposta dos serviços de saúde para os raríssimos pedidos de eutanásia ou suicídio assistido, por motivos clínicos, será a implementação de uma rede nacional de Cuidados Paliativos, preferencialmente domiciliários, que possa lidar de forma competente e adequada com a dor e o sofrimento, principalmente na fase final da vida.
O que diz a Bíblia
Em Génesis 1:26- 27 lemos que o ser humano foi criado à imagem de Deus, o que o dignifica e diferencia de todos os outros seres vivos. O sexto mandamento da lei de Deus é também claro ao determinar: “Não matarás” (Ex. 20:13). Ainda em I Coríntios 6:19-20, Paulo escreve, referindo-se aos cristãos, que somos propriedade de Deus, visto termos sido resgatados por elevado preço, através da morte sacrificial de Cristo: “Não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de Deus, e que não sois de vós mesmos?”.
A ideia de se provocar a morte, mesmo para aliviar o sofrimento, parece ter sido um conceito estranho e repulsivo para o povo de Israel, que, em obediência à vontade de Deus, sempre dedicou uma especial atenção às necessidades dos mais fracos e vulneráveis, como os órfãos e as viúvas. No capítulo I do 2.º livro de Samuel (6-10) encontramos uma história singular. O rei Saul, ferido de morte numa batalha contra os filisteus, pede para ser morto por um jovem amalecita, que poucos dias depois procura o rei David, procurando ser recompensado pelo seu feito. Diz o amalecita a David: “[o rei Saul] pediu-me para me aproximar dele e para acabar de o matar, porque já tinha entrado em agonia, mas continuava vivo” (2 Samuel 1: 9). O que o amalecita faz prontamente (ou diz que faz, porque há quem defenda que a sua descrição dos acontecimentos poderá ter sido inventada, para cair nas boas graças de David, sendo o relato verídico o que se encontra em 1 Samuel 31: 1-4 e 1 Crónicas 10:1-4). No entanto, ao contrário do que esperava, não foi elogiado nem recompensado pelo seu ato de misericórdia mas condenado à morte, por ter ousado levantar a sua mão para matar o rei que Deus escolhera.
A Palavra de Deus, profundamente realista, não omite referências a ocasiões na vida de grandes homens de Deus como Moisés, Jó, David ou Elias que, em momentos de grande angústia e desespero, desejaram morrer (p. ex. 1 Reis 19:4). No entanto, em todas as ocasiões Deus veio em seu auxílio, providenciando solução para as suas necessidades. Não defendo, porém, que a experiência de dor, perda ou sofrimento tenha um valor intrínseco que aproxime as pessoas de Deus, pelo que devem ser controlados com os recursos médicos disponíveis e acompanhamento espiritual. No entanto, é indiscutível que a revelação de uma doença grave e o sofrimento podem ter valor pedagógico do ponto de vista existencial, levando-nos a refletir acerca do sentido da vida.
O facto do próprio Deus ter encarnado em Jesus Cristo, a Sua morte sacrificial na cruz, apesar do intenso sofrimento, e a Sua ressurreição dos mortos são a resposta mais completa ao problema do mal e do sofrimento e um extraordinário sinal de esperança na vida eterna, em que não haverá mais “morte, nem luto, nem pranto, nem dor” (Apocalipse 21:4).