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Embora cunhada há relativamente pouco tempo, a expressão pós-verdade (*) traduz uma realidade velha de séculos. Podemos afirmar que ela (a realidade) existe desde que o Homem se assumiu como ser pensante, estando presente na prática em todas as situações em que as nossas convicções pessoais se confrontam com a realidade dos factos. Nesta perspectiva, sempre que lidamos com ideias e concepções, sejam elas filosóficas, religiosas, ou de outra índole, temos de esperar a sua manifestação.

 

Na realidade, não é a circunstância de apresentarmos factos objectivos que nos dá a garantia de, com eles, levarmos o outro ou nós próprios a alterar uma convicção anteriormente adquirida. O nó górdio situa-se precisamente aqui – nem sempre os factos são objectivos e nem sempre os factos apresentados retratam o real. Pelo menos é a essa conclusão que as nossas convicções nos levam e mais nos levam quanto mais arreigadas e principalmente sedimentadas estiverem. E se as nossas convicções nos levam a fechar a porta à argumentação lógica de base científica e se escancaram ao domínio do emocional qualquer facto apresentado, mesmo que comprovado, arrisca-se a bater numa parede de aço.

 

Deste drama e dessa tensão ecoa a pergunta de Pilatos a Jesus quando o Nazareno lhe foi levado a julgamento perante factos (nem sempre objectivos) apresentados pelos seus acusadores: “O que é a verdade?” Os factos acusatórios ou a sua interpretação (pelo menos alguns deles eram objectivos e traduziam uma realidade indesmentível) não se encaixavam no quadro paradigmático das convicções dos acusadores. Podemos até, em jeito de análise de intenções, concluir que o quadro mental de Pilatos não lhe permitia aceder a outra decisão senão aquela que tomou e que os evangelhos registam, mesmo que o real que os factos veiculavam apontasse por hipótese numa outra direcção. E nesse quadro judicial, os mesmos factos acabam por provocar reacções distintas e até contraditórias. Os factos não chegaram para que a unanimidade se estabelecesse.

 

É que os factos, nunca o esqueçamos, por muito objectivos que possam ser e por muito tradutores que sejam do real confrontam-se com o quadro mental paradigmático das convicções pessoais. Isso em parte explica por que razão a apresentação de factos como prova de validação de uma determinada teoria ou ideologia nem sempre se apresenta com o rigor da objectividade, na medida em que o arauto dessa teoria ou ideologia cede à tentação de, por assim dizer, se travestir emocionalmente. Por vezes o day after é não apenas traumático mas apocalíptico. E apocalíptico tanto no sentido restrito de uma realidade reveladora, como no sentido genérico de uma catástrofe tida como arrasadora.

 

Quem escreve sobre a vida e a mensagem de Jesus Cristo não pode ignorar esta realidade e esta tensão. Por vezes, tanto o escritor como o pregador cristão se esquecem de que a mensagem cristã se baseia em factos e não tanto em elaborações de ordem doutrinal ou filosófica. É verdade que o Cristianismo se ordena em torno de uma ideia central – a comunhão com Deus, o que exige uma profissão de fé, logo do domínio da ideia – mas, como diz Paulo, se Cristo não ressuscitou é vã a nossa fé, logo, do domínio do facto. Na realidade, todo o edifício ideológico cristão está dependente de um facto concreto – a pessoa de Cristo. Como tal, a mensagem apresentada pelo escritor cristão tem de estar sempre baseada nessa verdade central – o facto que é Jesus Cristo – mesmo que a mensagem provoque emoção no ouvinte ou no leitor. Ou seja, a emoção tem de ser sempre um subproduto da factualidade da mensagem veiculada.

 

É bem de ver que a emoção, poderíamos dizer toda a emoção, é volátil e não precisa de se basear em factos objectivos e concretos mas no equilíbrio (ou desequilíbrio) homeostático desejado. Por outro lado, o facto objectivo, precisamente porque ocorreu em resultado da intrusão do real, adquire consistência e entrega-se sem receio ao escrutínio da sua análise.

 

Ora, no tocante ao cerne da mensagem evangélica (entenda-se por evangélico a realidade da factualidade narrada pelos evangelhos), quem escreve sobre ela não está a elaborar senão sobre o concreto de um facto histórico que não é do domínio do onírico. Por isso, toda a escrita sobre as verdades evangélicas, mesmo apelando a uma resposta emocional, deve ater-se ao maior rigor objectivo, ainda que fruto de uma interpretação subjectiva ou pessoal. A não proceder desse modo, estará a transformar o facto-Jesus (centro do evangelho) na ficção-Jesus. Não basta que o discurso tenha lógica e consistência interna. É mister que ele não se submeta aos ditames do subproduto emocional.

 

Recorrendo a uma linguagem mais chã, podemos dizer que uma situação em que o conceito de pós-verdade impera se identifica com o “achismo”. No achismo, o facto, tradutor da realidade, é irrelevante e muitas vezes supérfluo, indesejado e um estorvo. O que conta não é a factualidade do real, mas a defesa de forma estrénua das nossas convicções, mesmo que, e principalmente, a sua base não seja lógica nem factual, mas dependente da argumentação do “porque sim”. O achismo dá-se mal com a objectividade do real porque o seu real é o resultado de um constructo conceptual que garante a quem o defende a estabilidade emocional sem necessidade de recurso a provas de aferição.

 

A verdade é que o universo religioso presta-se ao proliferar do achismo na medida em que, procurando as mensagens religiosas sossegar as consciências, elas abrem caminho à aceitação fácil de um quietismo que permita ao crente prosseguir sem sobressaltos no estado de graça de que desfruta. Ora, encarando e anunciando a mensagem cristã apenas na sua vertente religiosa, o escritor cristão não pode ignorar essa realidade e deve esforçar-se por não cair no logro de escrever para agradar ao seu leitor ou para se limitar a relatos de circunstância.

 

É também verdade que qualquer facto é interpretado segundo o quadro ideológico de quem o analisa e o enfrenta. O escritor cristão, como qualquer outro ser pensante, tem também o seu quadro ideológico mais ou menos definido. Por isso, não admira que o seu discurso reflicta o quadro em que ele se move. Mas uma coisa é a interpretação de um facto, outra bem diferente é a sua distorção, obrigando-o a encaixar-se nos quadros conceptuais de quem o analisa e sobre o qual escreve. Como já foi dito atrás, o Cristianismo caracteriza-se por ser uma mensagem que está mais dependente da factualidade do concreto do que da elaboração de uma argumentação de axiomas dogmáticos. É verdade que, como qualquer sistema ideológico, o Cristianismo provoca e muitas vezes motiva emoções (seria estultícia negá-lo), mas estas deverão ser sempre a consequência e não a causa.

 

Perguntar-se-á: como conseguir que, havendo tantas interpretações dos factos quanto os analistas, não haja distorção dos factos abordados? Tal como no universo das medições há sempre um padrão face ao qual as medições apresentadas são contrastadas, assim também o discurso do escritor evangélico ao discorrer sobre a pessoa e mensagem do Nazareno tem de ser contrastado com o padrão aferidor que é a revelação divina dada aos homens. Ela própria faz-se eco desta realidade no episódio da pregação de Paulo aos crentes de Bereia. Perante uma argumentação baseada em factos de que Paulo era testemunha (ainda que teológica e não presencialmente), os Bereanos confrontaram-na com o padrão aferidor que eram as Escrituras veterotestamentárias à sua disposição. E embora confrontados com factos novos, não tiveram pejo em os aceitar como válidos porque os concluíram avalizados pela Revelação.

 

Esta questão da autoridade é de extrema importância e a sua realidade deve estar sempre presente no espírito do escritor cristão. É que a pós-verdade impõe-se não apenas por ignorância ou laxismo de quem lhe está sujeito, mas pela existência de uma agenda escondida de quem a propaga, recorrendo muitas vezes a um excesso de informação e à referência a uma autoridade. Ora, a autoridade a que o escritor cristão deve estar sujeito não é nem o seu programa ou nome pessoais, mas a autoridade da Revelação, que o mesmo é dizer que é com ela que o seu discurso deve estar sintonizado.

 

Permanece, contudo, sempre no horizonte uma questão inescapável: o conflito real versus verdade. Sem entrar em grandes elaborações sobre a natureza e a realidade concreta do real, podemos dizer que entramos em contacto com o real através dos factos. Ou, inversamente, que o real se manifesta através dos factos. No entanto, a verdade pode nem sempre coincidir com o facto tradutor do real e, por intermédio dele, com o real. Na realidade, a verdade tanto se pode construir sobre os factos como sobre o constructo conceptual do pensante, em que o facto pode ou não estar presente. E não se pense que essa é uma realidade estranha ao universo religioso e, por maioria de razão ao Cristianismo. A Escritura faz-se eco dessa realidade no magnífico capítulo onze de Hebreus, em que lemos que os crentes creram contra toda a esperança face aos factos que enfrentavam. A realidade dos factos era uma – a desesperança – mas a verdade que alicerçava os crentes, sem negar a factualidade do que enfrentavam, era outra, apontando para uma realidade que ultrapassava os factos. Naturalmente poderemos sempre perguntar: e essa esperança não traduzia o verdadeiro real? É nesta ambiguidade e aparente contradição que a pós-verdade joga: nem sempre o facto traduz o verdadeiro real. Ela escamoteia, contudo, uma verdade que não podemos ignorar: a fé baseia-se na veracidade e fidelidade de uma palavra autoritativa. Como cristãos, acreditamos que essa palavra autoritativa provém do Criador e Mantenedor do universo em que nos movemos. E tendo ele já falado, então todos os factos e todas as verdades têm de estar consonantes com essa mesma palavra autoritativa já anteriormente falada e que Ele colocou ao nosso dispor. Essa palavra é d’Ele e só d’Ele e colocar outra a par ou em sua substituição é roubar a glória que só a Ele pertence. Não a subvertamos, pois.

 

 

(*) pós-verdade - Segundo a definição do dicionário Oxford, é um substantivo que faz referência a "circunstâncias em que os factos objectivos têm menos influência na formação de opinião pública do que os apelos emocionais e as opiniões pessoais". Segundo a Oxford Dictionaries, foi usado pela primeira vez em 1992 pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich.

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