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Tenho-vos dito estas coisas para que vos não escandalizeis. (João 16:1)

 

Há neste texto algumas revelações que nos permitem descodificar a sua mensagem e abrir as portas para os seus segredos e tesouros. Algumas são evidentes e transparentes, exigindo apenas a afirmação da sua realidade. Outras são induzidas como corolário próprio de toda a contextualização do seu articulado.

 

A primeira grande revelação deste texto é que Jesus fala. Quase todo este capítulo (João 16) é composto pelo ensino directo de Jesus, numa interacção viva e dialéctica com os discípulos, levando-os de descoberta em descoberta, de revelação em revelação, desembocando no assombro, passando muitas vezes pela estupefacção. Regra geral, é esse o percurso seguido por todos quantos entram em contacto com a palavra viva e transformadora do Cristo de Deus. Jesus não apenas fala, como tem prazer em falar e anunciar. Mas não fala por falar, não fala num exercício retórico, cujo alvo seja afirmar-se como detentor de uma verdade iluminada. Ainda que se assuma como a luz, a verdade e o caminho, neste discurso a Sua palavra flui simples, cheia de conteúdo, repleta da descoberta da verdade que, sem inebriar o nosso espírito, toldando-o para uma reflexão lógica, leva os seus ouvintes à convicção serena e profunda do real que Deus quis compartilhar com o homem através da pessoa do Nazareno. Jesus fala uma linguagem simples e acessível, mas profunda e não simplista. E a Sua palavra não nos esmaga nem desperta os instintos mais básicos e reptilianos do ser humano. Pelo contrário! Focando e partindo da humanidade tão contingente dos Seus ouvintes, Jesus leva-os numa viagem de descoberta de um transcendente que está ao alcance da imanência humana.

 

A segunda revelação é que Jesus não apenas fala como falou. O texto diz: “Tenho-vos dito estas coisas”. Ora, isto é passado. Jesus já falou. O que implica que as orientações para o caminho que somos convidados a trilhar já foram produzidas e proclamadas. No momento em que ouvimos Jesus falar, descobrimos que, embora com uma palavra sempre fresca, que diríamos sempre nova, Jesus já falou. Só temos de estar atentos aos sinais que foi deixando ao longo do percurso. Alguém já caminhou a mesma caminhada que somos convidados a encetar. Melhor ainda, quem a iniciou não apenas abriu o caminho, como é o próprio caminho (1). Toda a via que percorremos foi já testada, comprovada e achada perfeita e segura. Podemos seguir por veredas inóspitas, por carreiros pedregosos, por mato rasteiro que nos fere a carne, mas o caminho é seguro e quem se ancora nesta certeza sabe que nenhum mal ou perigo pode derrubar ou destruir o caminho. Por vezes o cansaço e o desânimo levam-nos de vencida, não por causa do caminho que seja falso mas porque nos faltaram as forças ou porque por instantes hesitámos ou duvidámos.

 

Em terceiro lugar, como seria de esperar com e em qualquer discurso, o que Jesus disse e diz tem não só uma consequência, como é movido por uma finalidade. “Tenho-vos dito estas coisas… para que". Toda a comunicação, seja ela verbal (escrita ou oral) ou não verbal (gestos, olhares, comportamentos) é movida por uma finalidade, isto é, não se comunica como mero exercício retórico, mas sempre com um objectivo, o de provocar mudança no destinatário da comunicação, seja ele o receptor imediato, seja ele um receptor mais amplo e por vezes ausente no tempo e no espaço. Nesta perspectiva, podemos afirmar que toda a palavra (2) tem poder, na medida em que exerce influência na volição individual e colectiva. Tendo toda a palavra esse poder, isso significa que mesmo a palavra escrita tem inscrita em si uma dinâmica transformadora que a seu tempo produzirá frutos. E essa palavra será tanto mais fidedigna relativamente à sua fonte quanto mais os resultados obtidos revelarem uma identidade e identificação com as intenções da fonte que a originou.

 

Esta expressão “tenho-vos dito” faz recordar uma outra (3), em que o apóstolo João utiliza não a palavra oral, mas a escrita para recordar aos seus leitores uma verdade que ele próprio havia já experimentado pela acção directa de uma palavra oral anterior pronunciada pelo próprio Nazareno. Podemos dizer que a diferença entre a palavra oral e a escrita é apenas de grau. O seu poder intrínseco e resultado prático são os mesmos. Por isso, mesmo não tendo a palavra oral do Nazareno, temos a Sua palavra escrita, com o mesmo poder e energia. A preponderância da palavra escrita sobre a oral deve-se ao facto de a palavra escrita estar como que congelada no suporte que a sustenta. Não está dependente de factores a ela externos, como a possível deficiência auditiva ou até mental ou psicológica do seu receptor, mas permanece intacta no seu suporte, vencendo o tempo, o grande adversário do ser humano. É evidente que os suportes físicos da palavra escrita também se desgastam mas a esse desgaste contrapõem-se não apenas as inúmeras cópias entretanto realizadas mas também as citações e os comentários produzidos sobre ela.

 

Assumindo a verdade ortodoxa da deidade de Cristo, esta questão levanta um problema de monta de extrema complexidade. Em primeiro lugar, a certeza de que Deus, embora por natureza um Deus oculto (4), fala e, ao falar, revela-se. Em segundo lugar, sendo Deus um ser que vive numa dimensão distinta e diferente da dos seres humanos, a dúvida: como é que Ele fala e como ter a certeza de que uma dada palavra provém d’Ele? Não nos deteremos longamente nesta questão, uma vez que só por si é tema (acalorado e prolongado) para inúmeros volumes, pelo que nos limitaremos a alguns aspectos de uma análise superficial.

 

O autor de Hebreus (5) faz-se eco dessa questão e, para além da afirmação segura de que Deus fala, revela que a divulgação da Sua fala é não apenas multiforme mas plural, no sentido de Deus ter falado não apenas uma só vez mas muitas, concluindo pela excelência da Sua revelação na pessoa e discurso do Nazareno, que, prossegue, reúne em si uma série de características e atributos próprios e exclusivos da divindade. Ou seja, mais do que final, o discurso de Jesus é fidedigno porque revela a natureza íntima de Deus. Por Ele, podemos ficar a saber como é Deus, quais as exigências que Deus faz ao Homem, qual o tipo de comportamento que Deus espera do Homem na sua relação com as diversas dimensões em que ele está envolvido. Assim, se quisermos conhecer o coração de Deus, o discurso mais revelador e mais fidedigno é o do Mestre Nazareno que na Sua própria vida demonstrou à saciedade no mínimo a Sua profunda e intensa relação com a divindade, a ponto de estar disposto a dar a Sua vida por essa verdade tida por Ele como segura, verdadeira e imutável.

 

No entanto, esta certeza cristã não responde a toda a questão se ela não for não apenas bem enquadrada mas de igual modo bem explicitada. E aqui temos necessariamente de aplicar os dois grandes princípios para a optimização da comunicação: em primeiro lugar, toda a mensagem deve ser descodificada não segundo o código de chegada, mas segundo o código de partida e, em segundo lugar, toda a mensagem deve ser comunicada tendo em atenção as categorias bio-sócio-psico-culturais do receptor. Se toda a mensagem para ser descodificada tem de estar sujeita a uma hermenêutica (sempre aberta) rigorosa e criteriosa, tendo em atenção não só os dois princípios atrás enunciados mas também a sua contextualização espácio-temporal, muito mais uma mensagem tida como originária de Deus. Sendo Deus inescrutável, só O podemos conhecer porque voluntariamente Ele decidiu revelar-se. No entanto, mesmo revelando-se, pode dizer-se que permanece um Deus oculto pois no momento em que nos arrogássemos à certeza de conhecer plenamente o Seu pensamento, Deus deixaria de ser Deus, na medida em que passaria a estar dominado e sujeito à Sua criação. Por essa razão, Deus sempre nos surpreenderá por mais que O conheçamos e tanto mais também o fará pois quanto mais nos aproximarmos d’Ele, tanto mais O conheceremos e quanto mais O conhecermos tanto mais desejaremos conhecê-Lo de forma mais profunda e quanto mais O conhecermos, tanto mais nos aproximaremos d’Ele. E nessa dialéctica e diálogo abre-se a porta ao espanto.

 

Mas o facto de, embora inescrutável e, portanto, impossibilitado de ser captado na totalidade pelo ser humano, situação essa em que Deus forçosamente perderia a Sua natureza divina, a verdade é que, ao revelar-se e ao falar, Deus fica preso à palavra anunciada e toda a palavra proclamada como tendo origem na fonte divina arrasta consigo a natureza de Deus. O que significa que aquilo que Deus é, por essência, caracteriza de igual modo essa mesma palavra. Isto implica que todas as virtudes que são inerentes a Deus estão presentes e são também inerentes à palavra comprovadamente tida como Sua.

 

Por outro lado, pondo em acção a primeira lei da optimização da comunicação, uma palavra tida como originária em Deus terá sempre de ter presente essa realidade que é Deus – um Deus oculto mas que se revela e se manifesta – e toda a descodificação que fizermos dessa palavra terá de ter em conta que, embora se nos destine, não foi produzida por nós, não é do domínio do Relativo, mas do Absoluto. Nunca podemos, sob pena de crime de lesa-divindade, transformar essa palavra numa palavra meramente humana. Fazê-lo equivale não apenas a diminuir Deus, mas a diminuir igualmente o nosso próximo a quem essa mesma palavra também se destina. Tornando-a nossa, estaremos a roubar ao nosso semelhante a possibilidade de, por si, descobrir o que Deus lhe está a transmitir, porque Deus comunica a Sua palavra a toda a Sua criação e não apenas a uma parcela privilegiada. E com isso, estaremos a exercer domínio injustificado e ilegítimo sobre o nosso semelhante. Mas que não nos dê cuidado a dificuldade de entender a palavra vinda de Deus – ela, embora descodificável segundo as características imanentes de Deus, é-nos veiculada tendo em atenção a nossa capacidade de descodificação, capacidade essa sempre sujeita ao condicionalismo das nossas contingências.

 

Ao falar, vimos, Jesus falou com uma finalidade. O que Ele disse, disse-o para que os discípulos não se escandalizassem. E se somos Seus discípulos, estamos também abrangidos por essa finalidade do Seu discurso. O que leva à conclusão de que o ensino de Jesus pode escandalizar-nos. E escandaliza-nos fundamentalmente ou porque desconhecemos o que Ele ensinou ou porque assimilámos mal o Seu ensino ou ainda porque menosprezámos a dinâmica própria da Sua palavra.

 

E é curiosa esta declaração do Nazareno. Este capítulo 16 de João insere-se num discurso maior, situando-se sensivelmente a meio dele. Depois de dois capítulos de tanta consolação, ensino, estímulo e revelação que seguramente encheram de júbilo o coração dos discípulos, deixando-os empolgados, eis que aqui Jesus os alerta para o facto de a Sua palavra e por extensão o Seu ensino e a prática da mesma poderem provocar escândalo neles. Sem forçar o texto e o seu espírito, podemos dizer que o ensino e sua consequente prática provocam escândalo. E não é forçar o texto porque Jesus alerta os discípulos para estarem preparados para não se escandalizarem. A palavra e em especial a praxis de Jesus provocam seguramente escândalo. Este é tanto mais ominoso quando proveniente de (ou produzido por) quem se confesse seguidor e praticante de Jesus ou de quem se afirma herdeiro de uma relação particular (e em especial revelada) com Deus. Podemos concluir que o escândalo pode manifestar-se em nós ou nos outros. No primeiro caso será o resultado da nossa reacção à palavra ou às suas exigências e aplicação, enquanto no segundo é a nossa reacção ao modo como os outros (e muitas vezes o Outro) recebem ou aplicam a palavra. Seja qual for o caso, uma coisa é certa: é a palavra, o ensino do Nazareno que provoca o escândalo, ela é o fautor do escândalo. Isso significa que é para ela que temos de nos virar para que o escândalo não nos afecte e determinar qual a relação que afinal mantemos com ela. Noutros capítulos voltaremos a abordar esta questão.

 

Mas em que consiste ou o que significa este escândalo? Essa é a palavra central deste versículo. As diversas versões consultadas (6) traduzem assim a palavra: escandalizar desorientar, desviar, tropeçar e cair. Poderíamos harmonizá-las todas numa única: “chocar”. Parece-nos que quando ficamos chocados com alguma coisa, o espanto (escandalizar) pode levar-nos a ficar desorientados e a abandonar (desviar, tropeçar, cair) a segurança que até então essa coisa nos havia dado. Nos capítulos seguintes, em que analisaremos os restantes versículos de João 16, iremos apontar com mais profundidade alguns desses escândalos. Por agora fiquemos com esta certeza e garantia: a palavra, o ensino, a prática do magistério de Jesus provocam (diríamos inelutavelmente) escândalo no mundo e nos Seus seguidores. Não seria errado dizer que o verdadeiro Cristianismo é aquele que produz (e provoca) o escândalo. Mal vai o nosso entendimento quando presumimos, assumimos ou consumimos um cristianismo cor-de-rosa, sem choques com o establishment (ou o sistema, como dirão alguns) a que o Novo Testamento chama “mundo”, sem provocar uma ruptura não apenas entre nós e o ambiente que nos rodeia mas, principalmente, obliterando a nossa cosmovisão e o nosso universo individual e pessoal.

Cristianismo que singra na crista da onda, qual surfista encartado, embrulhado nas quimeras dos amanhãs que cantam, em rejeição plena da nossa identificação com o semelhante nosso irmão que, ainda que longe da comunhão com Deus, é a ovelha perdida por quem Cristo deu a vida não passa de um humanismo falhado e distorcido. Cristianismo transformado em panaceia contra a pobreza dos seus seguidores, prometendo uma mirífica caverna dos 40 ladrões em que a abundância e a prosperidade material, mais do que um leitmotiv é a sua pedra basilar não é apenas uma caricatura mas a prostituição da essência do próprio cristianismo. Os seus próceres e chefes-de-fila não passam de Górgonas que se enganaram no filme: o seu lugar é no elenco de um Padrinho e não no de um Anno Domini.

O cristianismo, quando aplicado e vivido, provoca necessariamente escândalo. Não um escândalo com contornos de sequela em jeito de filme de série B das soluções propostas por sistemas caducos, mas escândalo no sentido paulino: o evangelho é escândalo para os judeus e loucura para os gregos (7).

Uma certeza nos fica: quando aplicado, o Cristianismo provoca escândalo. Esperemo-lo, pois, e alegremo-nos porque isso é sinal não apenas de que a palavra do Nazareno é verdadeira e segura, mas que também a estamos a aplicar correctamente, apesar das nossas imperfeições e contingências. Há certas franjas do universo cristão que pregam um cristianismo cor-de-rosa em que o sofrimento não só está ausente como a sua manifestação é considerada in limineausência de fé por parte do padecente. Como veremos num outro capítulo, o sofrimento faz parte do cristianismo, à semelhança do que sucede com a generalidade das mais diversas doutrinas, salvíficas ou não. Esta verdade não significa que tenha de haver sempre sofrimento ou que todos os crentes ficarão submetidos à violência ou até que o crente deva procurar o sofrimento. O Cristianismo não é uma doutrina de automartirização para com o martírio se ganhar um passaporte para alguma morada célica. Mas quem embarca nesta grande aventura proposta pelo Nazareno deve estar consciente de que a conversão ao Cristo e a adopção do Seu ensino, embora não equivalham a um passaporte para um sofrimento certo e inevitável, não excluem a possibilidade da sua manifestação nos seguidores do Cristo de Deus.

 

Não nos detendo na especificação do sofrimento, uma vez que ele assume gradientes diversos e distintos consoante as situações, os contextos e a própria interiorização pelo crente individual das ideias programáticas do Cristianismo, a verdade é que não só Jesus e os apóstolos alertaram para a possibilidade da sua manifestação, como ao longo dos séculos a violência contra os cristãos foi sempre um facto, a ponto de hoje, no século XXI, se poder dizer com uma segurança alicerçada nas estatísticas que o Cristianismo é a mais perseguida das religiões. O último versículo do capítulo 16 de João é bem claro a este respeito: no mundo tereis aflições.

 

 

NOTAS:

 

(1) João 14:6.

(2) Palavra aqui assumida não apenas como palavra verbal (escrita ou oral) mas como toda a unidade de comunicação.

(3) 1 João 2:1.

(4) Isaías 45:15.

(5) Hebreus 1:1.

(6) escandalizar (VUL, JFA, NUB, CEP); desorientar (BPT); desviar (LIV); tropeçar (NAS, LSB); cair (NIV, SEG).

(7) 1 Coríntios 1:23.

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