Por razões já explicados no Retalho C , este movimento evangélico de estudantes universitários está-nos na nossa «massa do sangue», minha e da Celeste. Os grupos com que trabalhávamos eram pequenos e com fortes laços de amizade – tanto em Espanha (onde, entre 1973 e 1977, eu viajava por vezes centenas de quilómetros para os visitar) como aqui em Portugal.
Em Portugal surgiu uma certa crise de identidade no movimento nos anos 70 porque alguns estudantes, oriundos de igrejas evangélicas, queriam adotar ideias políticas marxistas como suprindo uma «práxis» que, na opinião deles, faltava à fé das suas respetivas congregações. Também porque alguns dos convertidos vinham do meio católico. E, depois, porque, através da influência de um cônsul brasileiro temporariamente residente em Portugal, alguns membros dos grupos adotaram a postura de que todo o ato de serviço ou de evangelização devia ser o resultado de uma «palavra do Senhor» recebida diretamente em reuniões. Se os grupos já eram pequenos, muito mais pequenos ficaram quando, por uma ou outra destas razões, os seus elementos mais ativos os abandonaram.
A Celeste prezava no seu GBU local o ambiente interdenominacional. O facto de haver estudantes da Assembleia de Deus, da Igreja do Nazareno e da Igreja Baptista, terá sido naturalmente fator de risco na opinião de alguns dos pastores. Mas para ela, jovem batista, mas que de origem vinha do meio presbiteriano, o poder abrir a Bíblia e considerar em grupo, por exemplo, se um crente podia perder a sua salvação, era muito positivo. Isto apesar de os elementos pentecostais e batistas, que nunca por isso deixaram de ser muito amigos, não terem conseguido convencer-se mutuamente das suas respetivas posições! De certa forma eu, chegando em 1977 para colaborar, também poderia parecer mais um fator de confusão! Nasci no meio metodista, converti-me no equivalente do GBU em Inglaterra, recebi influências “carismáticas”, depois fui batizado aos 18 anos numa igreja baptista, posteriormente, identifiquei-me muito com as congregações de Irmãos em Espanha, mas também tinha tendências calvinistas…! Só que, como a Bíblia era só uma, e como o nosso hábito - aprendido de obreiros do GBU - era consultá-la sobre as diferentes questões de doutrina, parece que nunca vivemos nos grupos com uma sensação de confusão. E ficou reforçada no nosso espírito a noção daquilo que nos une, que é essencial à doutrina evangélica. E, como era normal nos movimentos da IFES em todo o mundo, acreditávamos que a Bíblia era a nossa suprema autoridade e era a revelação inerrante de Deus.
O GBU tinha um lema que prezávamos, «A Evangelização na Universidade é a Razão de Ser da nossa Existência». «Razão de Ser» passou depois a ser o nome oficial do nosso boletim, inicialmente publicado em folhas A4 duplicadas em «stencil». Recebemos bons apoios para evangelizar, como a visita de Ruth Siemens e Ada Lum, obreiras da IFES (Comunhão Internacional de Estudantes Evangélicos) que vieram ensinar e dar demonstrações práticas de estudos bíblicos evangelísticos - e como a colaboração regular nas bancas de livros na cantina e ao ar livre (nos bares das Letras e das Matemáticas em Coimbra) do missionário John Scott, da Igreja do Nazareno.
Mas não se viram conversões na primeira fase após a minha chegada. Os estudantes que vieram juntar-se ao trabalho eram de igrejas evangélicas. Outros colegas poderiam parar para conversar – mas não chegavam ao ponto de aceitar a mensagem da salvação. Sucedeu o mesmo no Porto, onde o grupo tinha «morrido» e ressuscitado – mas em escala pequeníssima – e em Lisboa, onde a nossa amiga Robélia (ver Retalho C), muito direta na sua abordagem evangelística, acolhia estudantes, principalmente das ex-colónias, para as reuniões no pequeno quarto que alugara na Avenida do Brasil. O crescimento que se viu, e que nos deu muita alegria, foi a nível da entrega de vida dos estudantes a Cristo e de convicção doutrinária, em todos esses grupos. Da passividade e da timidez passaram a ser em muitos casos bastante ativos. Mas a ênfase principal foi sempre a evangelização pela amizade. Tínhamos uma certa aversão a abordagens estereotipadas que resumiam a mensagem em quatro tópicos ou que convidavam a «decisões» e orações de entrega no fim do primeiro encontro.
Numa ocasião vimos uma «exposição» de um movimento feminista no átrio da Faculdade de Letras em Coimbra que nos chamou a atenção pelas referências pouco abonatórias que fazia ao ensino de Paulo sobre o papel da mulher. Percebendo rapidamente a distorção que tinham feito, resolvemos escrever um novo texto para mostrar que afinal o grande apóstolo não inferiorizava o sexo feminino. Apresentámos o artigo às estudantes na exposição e elas receberam-no com algum respeito e cortesia e até fomos participar num debate no seu núcleo na Associação Académica.
Noutra altura organizámos uma série de palestras na Associação Académica de Coimbra sobre o livro «Porque não sou Cristão?» do filósofo Bertrand Russell. Também a assistência foi bastante razoável e os debates acesos! Na nossa apologética havia a influência de Francis Schaeffer (cujos livros líamos - ele também visitara Portugal, mas muito antes desse período!).
Para muitos estudantes, como para nós, as idas a Schloss Mittersill (bonito castelo nos Alpes austríacos), para as conferências internacionais da IFES, foram absolutamente marcantes. Conheceram estudantes de países de leste da Europa que com muita dificuldade atravessavam a fronteira austríaca - e que não podiam reunir-se legalmente nos seus países. O elemento latino-americano da IFES teve também muita influência nas conferências. E também o psicólogo suíço-alemão Hans Burki, com os seus métodos inovadores e algo perturbadores! Aprendemos de obreiros como René Padilla e Samuel Escobar a ser evangélicos num sentido integral – mas sem cair na armadilha de um «evangelho» que fosse social ou político num sentido reducionista (à maneira da famosa Teologia da Libertação). Numa dessas conferências vimos também a profunda comunhão em Cristo, evidenciada por abraços e oração em conjunto, de elementos dos movimentos evangélicos estudantis árabe e israelita.
O GBU estava muito ligado à nossa casa, na Rua da Mãozinha, n.º 12 em Coimbra. O espaço era reduzido, as divisões muito pequenas. Quando vinham 4 ou 5 conselheiros do GBU (pastores e líderes evangélicos) tinham de dormir em colchões no chão. Só havia uma casa de banho e era diminuta. A cave, além de ser arrecadação, foi o espaço onde instalámos o duplicador, comprado após um apelo a amigos do GBU e onde eram preparados os nossos boletins. Antes dessa compra, o boletim tinha sido duplicado nas Igrejas Baptistas de Coimbra (pela Celeste) e Marinha Grande (pelo então estudante Rui Franco, que os levava para Coimbra), sendo sempre transportado em peso, nos transportes coletivos. As reuniões depois passaram a ser normalmente nas instalações de uma igreja (em Coimbra, a baptista) – e, depois ainda, quando se tornou possível, em salas cedidas pelas faculdades.
O nosso colaborador neste blogue, Jorge Pinheiro, também fez parte do corpo de conselheiros do GBU nessa fase.
Era fácil eu e a Celeste ganharmos um pouco o sentido de sermos os «paizinhos» dos grupos. Numa altura essa atitude foi posta em causa por um dos líderes estudantis que achava, com alguma razão, que se um grupo era de estudantes a sua «direção» devia dirigir de facto, passando os obreiros a ser menos diretivos. De facto, não éramos os «pais» dos grupos. Mesmo em termos humanos, o único casal que com alguma justiça poderia ter sido considerado como tal era o casal Alexandre e Katy Araújo (brasileiro e americana). Eles tinham «desbravado o terreno» antes do 25 de abril de 1974 e tinham ajudado na organização do primeiro movimento nacional com o nome de GBU.
Pela graça de Deus, e pelo compromisso sério dos movimentos de outros países e da IFES, vieram colaboradores para trabalharem em equipa com os obreiros nacionais que foram sendo nomeados: os primeiros portugueses, depois da Celeste, foram a Maria Helena Pais Martins e o Rui Franco. Ao longo destes 40 anos, obreiros da Noruega (dois casais consecutivos), da Colômbia, e mais tarde de Inglaterra (dois casais consecutivos e, agora, ainda outro recém-chegado!), dos Estados Unidos e do Canadá, e da Austrália, vieram enriquecer o movimento em diferentes fases da sua vida. Vidas com dons, capacidades e culturas muito diversos, foram «tecidas» por Deus numa tapeçaria extraordinária que nós nem sequer poderíamos ter imaginado. O sustento destes colaboradores vinha dos seus respetivos países, ou do movimento internacional: o dos obreiros nacionais vinha de dentro do país e foi muitas vezes extremamente difícil de levantar.
Uma tendência recorrente que vimos em estudantes comprometidos com o GBU foi tornarem-se demasiado críticos com as suas igrejas locais. O esforço que tínhamos de fazer com estudantes das igrejas muitas vezes era duplo: primeiro, convencê-los da importância de um grupo interdenominacional e, depois, convencê-los a manterem-se integrados nas suas igrejas, ampliando a visão destas.
Após oito anos de serviço em tempo integral, chegámos em 1985 ao momento de sentir que o nosso tempo como obreiros do GBU estava a aproximar-se do fim e que deveríamos procurar outro trabalho. Tínhamos de sustentar uma família já com quatro filhos. Quando deixei a função de Secretário-geral, o problema de quem me iria substituir não estava resolvido. Os obreiros noruegueses Oivind e Tone Benestad naturalmente não queriam assumir essa função num movimento português. Mas depois foram eles que deram muita ajuda na preparação do próximo Secretário-geral português, Alfredo Abreu - e do seguinte, Joaquim (Quim) Rogério.
Foi também no período em que os Benestads serviam em Coimbra que começou uma nova onda de conversões através do GBU. Nos outros grupos também houve crescimento neste sentido. Passaram também a ser organizados grupos em vários outros centros universitários no país.
Muito mais tarde o nosso filho John viria a ser um dos portugueses chamados para serem assessores. Também foi através da IFES que ele conheceu a sua esposa Laura! Serviram principalmente no Porto, onde em anos recentes viram um crescimento muito significativo do grupo, antes da sua mudança para Inglaterra.
Termino com um pequeno texto de Marcos, que para mim é extremamente marcante. Através dele lembro-me de ter recebido novo ânimo em muitos momentos de desânimo e frustração, tanto no trabalho do GBU como, depois, no ministério pastoral:
«O reino de Deus é assim como se um homem lançasse semente à terra, e dormisse, e se levantasse de noite ou de dia, e a semente brotasse e crescesse, não sabendo ele como. Porque a terra por si mesma frutifica, primeiro a erva, depois a espiga, por último o grão cheio na espiga. E, quando já o fruto se mostra, mete-lhe logo a foice, porque está chegada a ceifa» (Marcos 4:26-29).