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Uma das minhas ideias fixas desde sempre foi o gosto de subir montanhas. Atraíam-me as que podia subir sem grande perigo – entre as que mediam uns 500 metros apenas, mas que rodeavam o bonito vale do Rio Lune em Cúmbria e a aldeia, Orton, onde nasci, e alguns dos Alpes, na zona do Tirol, que pude conhecer quando estive no castelo da IFES em Áustria (onde em 1973 também conheci a Celeste - ver Retalho C!).

 

(Se o leitor destes retalhos tiver curiosidade, cada vez que menciono uma montanha ou localidade por nome pode ir ao Google ver a respetiva fotografia!)

 

Um grupo de uns seis participantes na Conferência na Áustria, num dia livre, conseguiu subir o Pihapper, que mede 2513 metros. Tem um cume extremamente bonito e que - num dia bem “puxado” - dá para subir e descer, sem grande perigo.

 

Em Heversham (ver Retalho H) já referi a minha profunda desadaptação em quase todo o tipo de atividade desportiva. Mas acontecia algo muito diferente em um ou dois dias por trimestre quando se organizavam excursões voluntárias, sendo uma das opções ir às montanhas do Distrito dos Lagos, de camioneta e subir Helvellyn (por Striding Edge), Bowfell, Coniston Old Man ou Scafell Pike – este último o pico mais alto da Inglaterra. No dia dessa excursão eu estava sempre transbordante de motivação e energia, em contraste notável com o “infeliz” que sofria e tremia nos dias do rugby!

 

A Escócia e o País de Gales tinham montanhas um pouco mais altas do que Scafell Pike. Com os meus pais passei perto de Ben Nevis (Escócia) e Snowdon (País de Gales) e – não sei como – eles conseguiram ganhar sempre a batalha, nos dias em que, com lágrimas, insistia que tinha de fazer a subida sozinho, de um desses picos. Nas montanhas que ficavam perto de casa o meu pai, numa idade já bastante avançada, subiu um dia comigo e ficou bastante satisfeito por ter conseguido!

 

Depois do meu casamento com a Celeste, as montanhas por vezes constituíam motivo de aproximação, mas também, outras vezes, de desentendimento. Nos primeiros tempos insisti que o nosso «dia livre» devia ser – algumas vezes – para subir a Serra de Lousã, ou outras montanhas próximas de Coimbra, onde vivíamos. Depois de uma subida assim à 2ª feira, a Celeste argumentava, com uma certa lógica, que iria precisar de descansar também na 3ª feira. Por causa do nosso compromisso de trabalho com o GBU, eu dizia sempre que isso não podia ser. O resultado foi que algumas vezes acabei por ir sozinho, deixando a Celeste em casa!

 

Não tínhamos carro e, por isso, ia a pé bastante cedo apanhar o comboio da linha da Lousã que me levava até àquela cidade (comboio esse que já deixou de existir!) e, daí, subia por diversos caminhos, até ao cume da Serra, algumas vezes passando pelas aldeias serranas, quase totalmente abandonadas, de Talasnal ou Chiqueiro. Numa ocasião o nosso sobrinho Filipe Jorge, na altura com cerca de 10 anos, aceitou acompanhar-me e, até hoje, relembramos com alegria essa expedição exigente para a sua idade, mas que o ajudou a cultivar o seu gosto pelo meio ambiente.

 

No dia de uma dessas subidas havia bastante nevoeiro. Na zona perto do «Castelo» de Trevim encontrei um pastor que estranhou a minha escolha de lugar para «passear». Naturalmente ele poderia ter preferido passar o seu dia de folga num Centro Comercial em Coimbra! Devido ao nevoeiro não acertei com o caminho para descer e encontrei-me num ponto da estrada que atravessa a Serra, a uma distância de uns 35 kms. da Lousã. Estava a chover bastante e pedi boleia a cada um dos pouquíssimos carros que passaram. Fiquei bastante feliz quando um casal parou e pedi boleia, se possível, até Lousã. Eles disseram que iam não só até Lousã, mas depois até Coimbra, o que representou para mim uma ajuda preciosa. Mas o desencontro de perspetivas entre o casal foi notável: enquanto eu falava em gratidão a Deus pela provisão dessa boleia, a Celeste e a sua irmã não conseguiam conter o seu riso ao imaginarem a figura que eu teria feito, encharcado e a pedir boleia na estrada da Serra! E a acharem que o meu sofrimento poderia servir-me de lição!

 

Este desejo da Celeste de eu aprender uma lição aparentemente não se concretizou – fiz muitas mais expedições ainda depois desse dia. Mas o que é notável também é o esforço que ela fez para me acompanhar em muitas idas às montanhas, sobretudo nas férias. Ela também gostava muito das zonas montanhosas – e, tendo sido estudante de Geografia, fizera um estudo do Vale de Ceira para a sua tese de licenciatura. Chegámos a fazer campismo selvagem na Serra de Gerês e na Serra de Estrela, sem carro. Na Serra de Estrela ela passou a noite em branco a pensar em lobos – enquanto eu, segundo o seu testemunho, dormia tranquilamente! Um dia descemos até à nascente do Zêzere pela estrada, mas resolvemos voltar pelos caminhos da montanha. Ao pé dos Cântaros (ver fotografias no Google!) subimos por caminhos extremamente íngremes, sem saber se teriam continuidade, já não tanto pela aventura, mas impulsionados sobretudo pelo grande medo que tínhamos de tentar uma descida. Foi com grande alívio que chegámos à estrada da Serra, perto da Torre!

 

O Ricardo ainda nos acompanhou em férias em que as viagens principais eram de comboio. Assim desfrutou connosco dos comboios com máquinas a vapor que ainda circulavam normalmente na linha do Douro e do Tâmega. Quando, depois, fizemos férias de campismo em família, já era com carro. Algumas vezes fomos a Inglaterra de carro e algo dentro de nós sempre puxava para não seguir os caminhos mais diretos, o que nos deu por exemplo uma excelente oportunidade de conhecer os Pirenéus e os Picos da Europa no Norte de Espanha. Muitos anos mais tarde, a Celeste e eu chegámos a fazer férias no Algarve sem nem sequer ir à praia – o nosso gosto era explorar as serras algarvias.

 

Nos nossos filhos vemos também o gosto pelas montanhas – mesmo que não seja para andar a pé tantos quilómetros como eu andava (com a exceção do Andrew que, já adulto, numa das nossas estadas em Cascadas, Vale do Lozoya, Serra de Guadarrama, chegou a andar quilómetros a pé, numa parte da Serra, durante as horas da noite – coisa que nem eu me teria atrevido a fazer!). O John sempre partilhou esse gosto pelo campismo e pelos lugares remotos. O Luís e a Lilian aprenderam a esquiar nessa mesma Serra (experiência que também nunca me atrevi a fazer), e estão a ajudar o Lucas (5 anos) e o Lourenço (2 anos) a cultivar o mesmo gosto.

 

Verifico que hoje existem muitas mais pessoas em Portugal que cultivam estes gostos do que anteriormente. Quando era mais jovem sentia a necessidade de me escapar, sozinho, para as montanhas, numa altura em que poucas pessoas aqui escolhiam essa atividade – sobretudo a pé! Hoje verifico que andar nas montanhas é tão popular que o problema em algumas zonas montanhosas já não é a solidão, mas sim as filas (de trânsito nas estradas e de caminhantes nos percursos pedonais mais populares).

 

O fascínio exercido por esses lugares é difícil de explicar – ou mesmo analisar. Só posso dizer que é um fascínio que me tem acompanhado em todas as fases da minha vida, ao longo de um percurso em que quase todas as outras circunstâncias mudaram. Não consigo articular melhor o profundo desejo de subir montanhas do que o famoso explorador inglês, George Mallory, que estudou em Magdalene College, Cambridge, e depois perdeu a sua vida no Everest. Quando em 1923 um jornalista do New York Times lhe perguntou porque é que a pessoa sente a necessidade de subir a montanha, ele respondeu «porque ela está lá»!

 

Mas creio que o poeta português, Miguel Torga consegue pôr em palavras mais do que isso, apesar de não ser crente, quando, ao contemplar o Vale do Douro, a partir do extraordinário miradouro de São Leonardo de Galafura, escreveu as seguintes linhas («Diário XII», Miguel Torga, 8 de abril de 1977):

 

 

O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso de natureza. Socalcos que são passados de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor pintou ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis de visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a reflectir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta.

 

Miguel Torga in Diário XII

 

 

Para mim, como crente, o desafio foi sempre não olhar só para as montanhas como se delas em si viesse automaticamente algum tipo de estímulo e conforto. Como diz o Salmo 121:

 

«Elevo os meus olhos para os montes; de onde me vem o socorro? O meu socorro vem do Senhor, que fez os céus e a terra».

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