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Numa altura, quando estava na Universidade, um grupo de colegas, responsáveis pela publicação de uma revista cristã, surpreendeu-me com um convite para ser, durante um ano, um dos seus editores. Já tinha formado a minha ideia sobre a revista – julgava que era demasiado «intelectual», e pouco direta na abordagem que fazia do Evangelho de Cristo. Aqui estava a minha oportunidade – «vamos usar esta revista para apresentar a mensagem de Cristo tal como ela é!». E a pequena equipa esforçou-se, no aspeto visual também, dentro daquilo que era possível com um orçamento muito limitado, e nos anos 70!

 

Quando saiu da tipografia o primeiro número sob a minha responsabilidade, agarrei um exemplar nas mãos e manifestei o meu contentamento a alguns colegas, de uma forma para mim bastante exuberante. Um deles, que tinha uma capacidade de discernimento fora do comum, olhou para mim e perguntou:

«De quem é essa revista: tua ou do Senhor?».

Senti-me logo merecedor da repreensão que a sua pergunta implicava.

Nessa situação e em muitas outras ao longo da vida, fui desafiado para liderar algum projeto ou associação cristãos. Muitas vezes, na realidade, parecia que era por falta de melhor hipótese. Pelo que me diz respeito, a minha maneira de me relacionar com as pessoas não sugeria de modo nenhum que fosse o seu líder. Era pouco assertivo na maneira de tomar posição, hesitando muitas vezes entre opções que julgava igualmente válidas. É verdade que sentia muita convicção acerca de questões de princípio, mas em questões de método e estratégia, era demasiado flexível. Por vezes manifestava bastante nervosismo em situações de pressão. Tinha pouca motivação para elaborar orçamentos (“como é que eu sabia quanto dinheiro é que Deus nos ia dar num determinado ano?”). E era normalmente tímido no contacto – como já referi no Retalho E.

O que acontecia, porém, era que acreditava firmemente naquilo em que me envolvia e queria ser útil no trabalho do Reino de Deus. Parece ter sido essa a faceta que as pessoas ao longo do tempo detetaram em mim e, por isso, me convenceram de que a melhor maneira de eu servir projetos que me interessavam poderia ser assumir a liderança deles.

A Celeste, por temperamento e por experiência pessoal, tinha mais o perfil de uma líder. Tinha sido presidente do Departamento da Mocidade da Convenção Baptista Portuguesa e, quando começou a nossa relação, era líder do GBU. Era ao mesmo tempo firme e equilibrada, sabendo trabalhar em equipa. Para servir o GBU aqui em Portugal, não seria melhor a principal responsabilidade estar nas mãos dela – uma pessoa de nacionalidade portuguesa?

Não foi, então, por eu ter o perfil óbvio de um líder que passei a substituí-la como Secretário-geral do GBU em Portugal durante uns seis anos. Foi porque, segundo a minha convicção, a Bíblia ensina como princípio a liderança masculina na obra do Senhor (e aqui estou muito agradecido à Celeste pela humildade com que também assumiu este princípio). Na realidade o objetivo era trabalharmos juntos, sendo os dois líderes, e cada um suprindo as limitações do outro. Mas na prática, na fase em que tínhamos filhos pequenos, tornou-se mais difícil a Celeste manter o seu envolvimento em profundidade no trabalho estudantil e, mesmo quando eu assumia algumas responsabilidades com os filhos, ela ficava com o peso principal nessa área. Assim ficou muita limitada na prática no trabalho do GBU – em que ela antes tinha investido tanto.

Depois em 1991 – quando fui consagrado pastor e vim servir a igreja de Caldas da Rainha, já com os filhos na escola – quisemos retomar o nosso sonho de ministério conjunto. Estávamos convictos da chamada para o ministério pastoral em conjunto e viemos empenhar-nos ao máximo para sermos úteis à comunidade, apesar das dificuldades inerentes a isso.

É verdade que não entendíamos a função pastoral da mesma maneira que a igreja aparentemente a entendia. Na mente das pessoas existia um modelo bastante tradicional – do pastor único que em tudo «vai à frente do rebanho». Não tinham a noção do que nós perfilhávamos – o modelo da liderança da igreja como um grupo colegial. Alguns tinham saudades do pastor que fundara em 1956 a igreja de Caldas. Diziam que, quando havia desentendimentos entre os crentes, o Pastor António Martins «dava um murro na mesa» e assim tudo ficava resolvido! Mas eu julgava que devia servir de acordo com os meus dons na pregação, ensino e aconselhamento pastoral – deixando aspetos administrativos e práticos com outros elementos da equipa.

Mesmo assim não punha de parte o trabalho prático. Quando, por exemplo, comecei a ajudar na pintura das instalações da igreja, senti que a minha atitude afinal não estava a ser bem compreendida. As pessoas não pareciam tomar isso como «espírito de serviço» mas, sim, como uma certa falta de respeito da minha parte pela dignidade da minha função de pastor! E muito menos podia ajudar a lavar a louça no fim dos convívios na igreja (aqui entrava a questão do papel dos géneros também)!

Numa altura expliquei que não seria a pessoa mais indicada para dirigir assembleias de igreja (o modelo português de reunião administrativa pareceu-me sempre um tanto conflituoso e difícil de gerir!). Tentei que outro membro da chamada «Junta Administrativa» assumisse essa função. Mas ele explicou-me que o Regulamento Interno da igreja exigia que fosse o pastor a dirigir.

Depois, como o método era democrático, as reuniões terminavam por vezes por ser manipuladas. Os que sabiam granjear a simpatia do maior número para as suas propostas, comandavam o processo e o pastor aqui (curioso paradoxo!) era um mero moderador que não tinha voto e que tinha de se submeter às decisões da maioria dos membros. Esta ideia veio a causar-me alguns dilemas sérios em alturas em que tomava posições que sabia serem menos populares, mas baseadas na Palavra, e a questão seria decidida por voto da maioria . Como já expliquei (ver Retalho J), o meu sistema nervoso não me permitiu estar disponível para dirigir algumas das reuniões mais críticas – reuniões essas em que se estava a pôr em causa a minha permanência no ministério da igreja - e nesses dias a Celeste com o apoio da Junta Administrativa substituiu-me, conseguindo pela graça de Deus manter a sua calma e dignidade.

Mas o resultado surpreendente dessa experiência – de a Celeste conseguir moderar reuniões difíceis – foi ela, contrariamente ao que se poderia esperar, perder toda a noção de, como mulher, poder ser chamada ao ministério pastoral! Em jovem ela tinha sonhado algumas vezes com esse ministério e era eu que mantinha que a Bíblia ensinava a liderança pastoral masculina. Ela voltou a afirmar com toda a clareza a vontade de servir ao meu lado, mas viu a sua tarefa como sendo a de me ajudar para, em alturas futuras, eu conseguir aguentar melhor as pressões. Quando, anos mais tarde, a questão da consagração pastoral feminina veio a ser discutida no meio baptista, não fomos dos que deram o seu apoio à ideia. Afirmámos que só podíamos defender essa situação se esse ministério da mulher fosse reconhecido dentro de uma equipa colegial na igreja local, sendo o dirigente dessa equipa um líder de sexo masculino.

Numa certa altura, nos anos 2011 e 2012, parece que o Senhor nosso Deus estava a olhar para a situação da igreja de Caldas da Rainha e estava a querer comunicar-nos que o tempo do nosso ministério devia estar a chegar ao fim. Devia vir a haver um novo pastor. Como eu tinha só 61 anos na altura, não era natural ainda passar à aposentação. (Mesmo assim, antes dessa altura, alguns outros «ajudantes» tinham «desejado» o ministério pastoral de Caldas. Desmascarar as suas ambições pouco dignas tinha causado mais algumas crises passageiras para a comunidade).

Mas, em 2012, achávamos claramente que o propósito do Senhor era que a responsabilidade pastoral passasse a outro. A maneira como Ele conseguiu esse objetivo, agindo com a Sua sabedoria (e um certo sentido de humor!), foi bastante surpreendente. Desde 1991 que eu tinha servido regularmente no Seminário Baptista como professor, por vezes também como membro do Conselho Diretivo, e ultimamente como Deão de Alunos. Uma coisa que sempre costumava dizer é que me sentia muito bem nessa situação, porque nunca poderia ser chamado para ser Diretor da escola. Servia sob a liderança do Pr. Manuel Alexandre Júnior, do Dr. Glenn Watson e do Pr. Paulo Pascoal, reconhecendo o valor do trabalho enorme que cada um deles fazia, com os seus dons bastante diferentes, e alegrando-me no facto de eu não ter os dons para poder exercer esse tipo de função.

Quando, em 2011, o Pr. Paulo Pascoal estava a tentar preparar a sua saída para fazer estudos com vista ao doutoramento (a primeira ideia era nos Estados Unidos – depois surgiu-lhe a oportunidade no Canadá), surpreendeu-me com o desafio de eu vir a assumir a função de Diretor! Não se estava a ver qualquer outra hipótese. Seria a melhor maneira de continuar a servir! O Pr. Paulo conhecia as minhas capacidades e limitações e disse que o papel desta figura de líder iria agora ser definida de uma maneira diferente. Eu seria o líder no sentido «espiritual» e teológico, e teria uma boa equipa para se encarregar dos aspetos administrativos da vida da escola.

Quem quer servir por vezes tem de o fazer liderando! Achei que devia aceitar. E sabia que de qualquer maneira seria por poucos anos.

Mas quando, por várias razões, o tempo da minha liderança da escola chegou ao seu fim (bastante tempo antes da altura prevista), percebi quais eram as razões mais importantes que o Senhor tinha tido para esta mudança abrupta a que nos tinha submetido (a mim e à Celeste!). Afinal tinha a ver mais com a Igreja das Caldas da Rainha do que com o Seminário! O que era realmente importante não era eu vir a ter a honra de ser «diretor» da escola. Era sobretudo nessa altura a igreja de Caldas da Rainha ter uma boa razão para encarar a minha substituição – e vir a consagrar o Pastor Paulo Francisco, apesar de este ainda não ter terminado o seu curso. Ele, o Pr. Paulo, iria liderar a igreja numa nova fase para a qual os seus dons e capacidades eram muito mais indicados do que os meus! A questão da liderança do Seminário viria, após uns 20 meses, a ter outra solução – mais adequada para a escola e menos penosa para nós!

Isto não quer dizer que eu não tenha contribuído com nada de valor para o Seminário no período em que era o seu diretor. Sobretudo na resolução de uma crise (que teve a ver com a questão do ministério pastoral feminino!) e na área de relacionamentos com alguns colegas, e com outras instituições de ensino teológico e conjuntos de igrejas, vejo que a minha contribuição foi útil.

Quando deixei a responsabilidade principal do Seminário, um dos factores que confirmaram que era a altura certa foi a doença inesperada e muito grave da Celeste em 2014 (contada no Retalho O). A igreja, já liderada pelo Pastor Paulo, envolveu-se nessa situação com muito amor, e mesmo ousadia na oração, nesse período crítico.

A nível da igreja todo esse período foi extremamente frutífero. E tendo nós feito de 2012 a 2013, um ano de pausa, em que deixámos de frequentar os cultos (para que o novo pastor não se sentisse coibido pela nossa presença), voltámos com alegria para reassumir algumas responsabilidades sem ser na liderança. Fomos reintegrados na equipa de ensino na Escola Dominical e de pregadores, podendo beneficiar do bom ambiente da comunidade que amávamos e que, a pouco e pouco, estava a integrar novos membros e a reintegrar membros afastados.

 

E, mais uma vez, tive de considerar que a prioridade de Deus não é o lugar de «honra» (no sentido humano) que nós possamos ocupar no Seu trabalho. Todos somos chamados a servir: algumas vezes – nem sempre – a maneira como Ele quer que sirvamos pode ser colocar-nos ou manter-nos na função de líderes. E, outras vezes, pode também ser retirar-nos dessa função!

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